Parece que a opção de Bagno se deve a um desejo de livrar quem escreve de preocupar-se com o assunto. Apegando-se a um texto de Alencar (em que se fala de uma “operação intelectual que se opera com rapidez”), ele propõe que a gente vá “à São Paulo” como quem vai à Bahia. Um comentário (mais bem escrito do que o de José de Alencar) de Millôr Fernandes sobre a inexistência fonética do “a craseado” no Brasil leva Bagno ainda mais a fingir que solta as amarras. Para mim ele soa esnobe. Os gramáticos ou estudantes desejosos de entender como funciona a língua — coisa que Bagno deve ter sido desde sempre, dada a minúcia com que ele entra em observações históricas, lógicas, filosóficas, sociais, econômicas e políticas sobre as formas de expressão verbal —, esses gramáticos e estudantes, eu dizia, chegaram com amor ao entendimento da crase dos “as”. Não podem ser apontados como os que desejam parecer estar acima do comum dos mortais. Quem quer mostrar que um maior conhecimento científico o leva a se sentir superior a quem ele julga que se sente superior deve ser reconhecido como, no mínimo, igualmente presunçoso.
Nos livros que estou acabando de ler, encontrei também casos tipo “leis que no final do século XIX tinham sido superadas há mais de 10 anos”. Ou seja, quem escreve não tem em mente que esse “há” aí é um verbo — se tivesse, o conjugaria no passado. O “há” passou a funcionar como uma preposição. Há tanta gente que se enrola com a crase dos “as” quanto as que se enrolam com “daqui a cem anos” e “isso se passou há muito tempo”. Recebo o mesmo número de e-mails de gente letrada com confusão entre “a” e “há” quanto entre “a” e “à”. Seria o caso de considerar o “há” de “há muito tempo” como uma preposição e grafá-lo, à Bagno-Alencar, com um acento grave: “ouço essa conversa à décadas”. Aliás, já encontrei isso também.
Bagno propõe que se ensine aos alunos as formas tidas como corretas pela gramática convencional, mas como opção alternativa, que o aluno usará se e quando achar necessário. As forças centrífugas da
mudança constante da língua são mais intensas do que as forças centrípetas da organização gramatical. Assim, num país desesperado por letramento, aconselha- se que professores ensinem complexas relações hierárquicas entre formas que ele já usa e formas que só conhecerá na escola.
Além de tudo isso, desagrada-me que a conjugação dos verbos na segunda pessoa do plural seja tida como algo morto por só se encontrar na Bíblia. Conheço enorme número de pessoas que só leem a Bíblia. E que o fazem sempre. Se a solenidade de que se reveste a religião levou os editores do Livro Sagrado, em português como em inglês, a manter velharias como o “vós” e o “thy”, os milhões de receptores das palavras reveladas deveriam entrar na conta sociológica do linguista de maneira diferente.
Afora isso, comove-me ouvir Chrissie Hynde cantando “The Empty Boat”. Sonhei ou tive a visão de uma menina loura no adro da igreja no dia do aniversário de minha mãe? Ela me dizia algo sobre daqui a três anos. Como achá-la no Brasil, no mundo? Cartas à redação. Bagno dá uma dica boa sobre a crase. Tenho uma melhor.
Ele ressalta palavra feminina. Mas eu quero que meu aluno entenda. Sugiro pensar em “ao”. E confesso que prefiro “aa” (que se usa na fala, para esclarecer) a um “à” indiscriminado.
O GLOBO
14/10/2012
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