quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Entre as brumas do tempo - JORGE FERNÁNDEZ DÍAZ

 Hobsbawm parecia um
paleontólogo diante de um
dinossauro: estava com o
sargento da patrulha que
matara o lugar-tenente de
Mate Cosido, legendário
bandido rural argentino


Contaram-lhes em Resistencia que um lugar-tenente de Mate Cosido — o legendário bandido rural do Norte argentino — havia se apaixonado por uma professora de Misiones. A polícia pressionou a família da moça. Atribulada, ela aceitou convidá-lo para um passeio romântico. O delinquente era procurado, mas não pode resistir — abandonou a clandestinidade e apareceu perfumado em seu automóvel. O plano da polícia era simples: em um lugar pré-determinado, a namorada simularia uma súbita indisposição e pediria para descer do carro.

Aconteceu como planejado. A mulher saiu, se afastou e a polícia apareceu, abrindo fogo. O comparsa do bandoleiro mais famoso do Norte argentino caiu morto. Isso ocorrera no final dos anos 30 e — garantiram aos dois forasteiros — um dos policiais que perseguira o Robin Hood do Chaco estava vivo e aposentado, morando em um sítio nos arredores da cidade de Presidente Roque Sáenz Peña.

Ávidos por história, esses dois forasteiros eram intelectuais que, em 1968, estavam estudando a marginalidade nos confins sul-americanos. Um era José Nun, discípulo de Alain Touraine, companheiro de Fernando Henrique Cardoso. Outro era Eric Hobsbawm, reconhecido como um dos historiadores mais importantes e autor de “História do século XX”.

Nun viajara à Grã-Bretanha para conhecer aquele brillante historiador. Hobsbawm era um homem afável. Aceitara visitar a Argentina.

Pouco tempo depois, Nun levou-o a passear por Buenos Aires e pelos bares, para ouvir jazz. Hobsbawn gostava tanto dessa música que escrevia artigos em um jornal inglês sob o pseudônimo de Frankie Newton. Sob esse nome de ficção estava cifrada uma homenagem ao trompetista de Billie Holiday, que era comunista.

Nessa época, o historiador ainda era um membro do Partido Comunista Britânico. Entre um vinho e outro, Nun fez uma pergunta que soa ingênua até hoje:

— Você acredita que realmente vai viver para ver a revolução marxista na Grã-Bretanha?

Hobsbawm pensou e respondeu:
— Claro que não. Houve um tempo em que eu pensei que a revolução estava ao alcance da mão. Era o fim da Segunda Guerra Mundial. Houve um impressionante nível de solidariedade na sociedade inglesa. Vizinhos lhe chamavam para dizer: “Eu tenho bônus de racionamento de sobra, não quer um?” Em contraste, naqueles anos, os franceses ansiosamente enchiam banheiras com o que rapinavam por aí.

Esse espírito de solidariedade que existia na Inglaterra, e não existe na França, foi perdido. Eu pensei que esse espírito nos levaria ao socialismo. Mas veio o Partido Trabalhista, e mais tarde estávamos de novo no individualismo capitalista.

Bebeu o resto do seu vinho:
— Não, eu não vou ver a revolução. Mas eu tenho que agir como quem acredita que ela virá. Porque essa é a única maneira de acontecer.

Hobsbawm era marxista e pagou por isso durante a Guerra Fria. E também pagou quando criticou duramente o regime stalinista e renunciou à doutrina do marxismo-leninismo.

Finalmente, viajaram juntos para Resistencia, para começar seu estudo de campo. Nun tinha lido outro clássico de Hobsbawm: “Rebeldes primitivos”. Nesse livro, o historiador analisou quatro rebeldes pré-capitalismo: o ladrão nobre (um Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres), o vingador (como os cangaceiros brasileiros do século XIX), os guerrilheiros húngaros (formação paradigmática da luta contra o opressor estrangeiro) e bandidos expropriadores (próximos do anarquismo).

Nun percebeu que a história de Mate Cosido não passaria indiferente ao seu companheiro de viagem. O bandoleiro famoso, que na Argentina foi lindamente estudado por Hugo Chumbita, se chamava David Segundo Peralta. O apelido tinha origem numa cicatriz em sua cabeça. Autodenominado “o vilão dos pobres”, amado pela população local, era famoso na região por roubos a propriedades da Bunge & Born, Dreyfuss e Anderson, Clayton & Co. e La Floresta, e por sua associação com o outro Robin Hood dos pampas: Juan Bautista Vairoleto.

A notícia de que havia um sobrevivente da patrulha fascinara Hobsbawm. Em Presidente Roque Sáenz
Peña encontraram o sobrevivente da patrulha que matara o lugar-tenente de Mate Cosido. Era um sargento chamado Avalos. Em torno de um mate, conversaram.

A certa altura, Hobsbawm disse: “Espere, espere, deixe-me adivinhar.” E tomou a narrar em detalhes como eles se organizaram e como eles se moviam. O sargento abriu o olhos, não podia acreditar: a história do bando havia tinha chegado a Londres? “Não”, respondeu o historiador. “O que estou descrevendo é a forma como operavam bandidos sociais na Itália durante o século passado.”

Depois de anos em arquivos e diante da vida real, parecia um paleontólogo em contato com um dinossauro. Sua teoria até então explicava o surgimento desses bandidos como resultado de um confronto entre o capitalismo nascente e comunidades tradicionais que foram subjugados. A experiência da Argentina levou-o a reescrever esta teoria em outro famoso artigo acadêmico, publicado em 1972, no qual aceita o tipo híbrido entre ladrão “nobre” e a filiação de viés anarquista que Mate Cosido e Vairoleto demonstravam com orgulho.

Hobsbawm tornou-se leitor de Borges e voltou a Buenos Aires por duas vezes. Procurava Nun em jantares, discutiram a política e a vida. Há duas semanas, Nun soube que Hobsbawm morrera, aos 95 anos. “Me deu uma pena, uma grande pena” — disse-me Nun. “Te conto tudo isso para que não se perca nas brumas do tempo.”

Jorge Fernández Díaz é colunista do jornal “La Nación” (Argentina)/ GDA

O GLOBO
18/10/2012

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