terça-feira, 16 de outubro de 2012

Na Bienal, entre crianças - Maria Esther Maciel‏



Vale a pena ir à capital paulista só para ver a 30ª Bienal de Arte de São Paulo, aberta no início de setembro. Em minha opinião, uma das melhores bienais dos últimos tempos. Sem grandes estrelas da arte contemporânea, sem obras monumentais, sem clima de espetáculo. Grande parte das obras expostas é inédita, e dos 111 artistas que integram a mostra, quase a metade é de novos representantes da arte latino-americana. Entre os brasileiros está o ótimo Thiago Rocha Pitta, mineiro de Tiradentes. 

O conjunto forma uma instigante constelação de nomes e poéticas, que tem o sergipano Arthur Bispo do Rosário como o ponto de irradiação. Muitos dos artistas da mostra dialogam com ele implícita ou explicitamente, seja pela tentativa de ordenação do mundo a partir de arquivos e catalogações insólitas, seja pelo uso de materiais precários extraídos da vida cotidiana ou pela articulação entre imagem e palavra. 

Optei por visitar a Bienal no meio da manhã de uma terça-feira, de modo a evitar as filas na entrada e os transtornos do trânsito paulista. Deu certo. O enorme pavilhão do Parque do Ibirapuera estava bem transitável. A presença maior era de turmas de alunos, creio que de escolas públicas, a maioria na faixa dos 10 anos. Como eu, as crianças chegaram e foram direto à sala de Bispo do Rosário, acompanhadas de professores. E começaram a percorrer, alegres, todo o espaço, fazendo comentários interessantíssimos sobre tudo o que viam e imaginavam. Passei alguns minutos entre elas, só para ouvir o que conversavam. Foi muito divertido.

Toda vez que vejo uma exposição de Bispo fico emocionada, como se nunca a tivesse visto antes. É de uma beleza e uma força poética sem tamanho. Como alguém que viveu 50 anos confinado num hospital psiquiátrico foi capaz de criar obra tão enciclopédica, utilizando como matéria-prima os detritos do próprio cotidiano? Que artesão maravilhoso foi esse, que conseguiu bordar o universo em pedaços de pano? Que arquivista foi esse, que se dedicou a inventariar todas as coisas do mundo, a pedido dos anjos?

Houve um momento em que vi um grupo de meninas rindo diante de um dos trabalhos. Curiosa, fui até lá. O que as divertia era um dos tabuleiros do artista (conhecidos como assemblages ou vitrines) cheio de objetos usados: um pedaço de telefone amarelo de brinquedo, um pé de sandália Havaianas, um chaveiro de loja, uma seringa, um palito grande de fósforo, pedaços de borracha, uma maçaneta de porta (ou seria um abridor de janela de carro?), um pote cheio de carretéis e outro com duas dentaduras. Uma menina, que provavelmente nunca tinha visto uma dentadura na vida, exclamou de repente, com assombro: “Credo! Será que essas gengivas cheias de dentes são de gente morta?”. E a outra: “Parece que os dentes estão rindo fora da boca!”. E todas caíram na gargalhada. Já sobre os carretéis, ouvi o seguinte: “Era aqui que o Bispo guardava as linhas para bordar os panos.”

Lamentei não ter ficado mais tempo perto da meninada, mas o tempo estava passando e eu queria ver os demais artistas. Quando saí da sala, achei que não fosse me desvencilhar dos efeitos hipnóticos da obra de Arthur Bispo do Rosário. Mas logo me entreguei a outras vertigens.
 ESTADO DE MINAS
16/10/2012 

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