quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Na feira, entre paixão e mangás - Marina Colasanti‏




Frankfurt – Atravessando a ponte de ferro que cruza o Rio Meno, um modismo chama a minha atenção. São centenas de cadeados, com e sem corrente, solitários ou em cachos, presos nos balaustres de ferro. Todos os cadeados têm nomes gravados. São namorados ou amigos ou grupos de trabalho que testam sua ligação prendendo-a dessa maneira simbólica. A graça será voltar e verificar se amor e amizade sobreviveram em liberdade, ou se apenas se mantêm juntos quando retidos por uma chave.

Na Feira de Frankfurt, não precisamos de teste, estamos todos presos ao livro por uma paixão que nada desata. Não é uma feira aberta ao público. Durante toda a semana, somente profissionais circulam neste elegante mercado persa de leitura feito de espaços enormes, escadas rolantes e esteiras, onde, ao redor de mesinhas discretas, nos estandes e nos pavilhões, se negocia a palavra impressa e agora também a virtual. É uma multidão aparentemente silenciosa essa que se movimenta apressada, levando pastas e bolsas cheias de livros, com passos abafados pelos carpetes. De tantos encontros, tantas conversas, quase nada se ouve. De vez em quando, uma aglomeração em frente a algum estande ou pavilhão, é um coquetel ou uma leitura, é uma filmagem ou entrevista para a televisão, um pulsar de trabalho que ainda assim se mantém discreto. 

Mas essa discrição toda desaparece ao fim da semana profissional, quando os editores já se foram e a feira é aberta ao público. O silêncio de que os alemães tanto gostam dá lugar a uma espécie de Japão delirante, pois já há alguns anos tornou-se moda entre os jovens ir fantasiado de personagem de mangá. Cruzei com uma moça pálida que carregava nos braços um falso cadáver, me vi espremida entre três jovens vestidas de bonecas e um homem com asas abertas feitas de facas luminosas, quase pisei na cauda de um dragão, esbarrei em vários samurais. Como em uma festa à fantasia, vai-se para ver e ser visto, para fotografar e ser fotografado, para comer nas inúmeras lanchonetes e nas barracas ao ar livre, e, se possível, para surpreender. Os livros diante dos quais as pessoas se apinham não estão à venda.

Desse universo múltiplo, o Brasil será rei no próximo ano. Como um cetro, o cilindro transparente que contém o compromisso nos foi passado pela Nova Zelândia durante a comovente cerimônia de encerramento. Na escuridão de um espaço sem limites, em que espelhos de água refletiam as luzes salpicadas no alto como estrelas, os maori despediram-se com cantos indígenas. E o Brasil assumiu, com um tocar de violão.

Deveremos nos sentir bem, nessa Frankfurt que pretendemos invadir culturalmente. Centro financeiro mais importante do país, ninho dos grandes bancos, não parece exibi-lo. O Rio Meno a atravessa com a mesma serenidade com que fluía no século 1, quando a cidade foi fundada pelos romanos. Os espigões modernos são pontos de exclamação na paisagem urbana, os plátanos sombreiam as ciclovias e avenidas. 

Do lado de fora da feira há uma enorme escultura, um homem de ferro que levanta o braço direito e martela, e torna a levantá-lo e martela, em interminável repetição do mesmo gesto. É o Trabalhador. Olhando para ele, imaginei-o no ano que vem, folheando um livro repetidamente. Um livro brasileiro.
 
ESTADO DE MINAS
18/10/2012 

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