domingo, 3 de março de 2013

Ficha limpa na Santa Sé

Em conclave, cardeais devem buscar um Papa imune aos escândalos que assolam a Igreja

Deborah Berlinck
Enviada especial

ROMA O futuro Papa - o homem que vai guiar estimados 1,2 bilhão de católicos no mundo e comandar uma Cúria Romana dividida e indomável - terá que ser um santo. Pelo menos no sentido figurado da palavra. Ao fim de quase oito anos do conturbado pontificado de Bento XVI, marcado por escândalos de pedofilia, disputas internas e até roubo de documentos secretos, o fator que mais pesará na escolha dos 115 cardeais que vão se reunir a partir de amanhã em Roma não será origem ou idade, mas mãos limpas. Mani pulite , diriam os italianos.

Com base nessa tese, Salvatore Izzo, especialista em Vaticano da Agência Itália (AGI), conta já ter eliminado de sua lista de papáveis sete ou oito cardeais que participarão do conclave:

- O verdadeiro debate no momento diz respeito à santidade pessoal do candidato. Esse vai ser o elemento principal. O candidato deve ser absolutamente íntegro e acima de qualquer suspeita. Não apenas comportamento pessoal, mas também se combateu de forma justa o fenômeno da pedofilia.
Izzo não é o único. James Weiss, teólogo do Departamento de Artes e Ciências do Boston College, nos Estados Unidos, também diz:

- Eles todos vão estar se perguntando quem está seguro. Seguro significa quem está livre de chantagem, que não tem roupa suja, mas também quem tem poucos inimigos (na Cúria) e que vai conseguir fazer o trabalho.
Pelo critério de não ter muitos inimigos na Cúria, Weiss elimina dois papáveis que figuram em muitas listas como fortes candidatos: Peter Turkson, de Gana, e Christoph Schönborn, da Áustria. Segundo ele, os dois "falaram demais" e têm inimizades internas.

ITALIANOS COM POUCAS CHANCES

Entre os cardeais eliminados por Izzo, o mais óbvio é Roger Mahony, que estará no conclave apesar de estar sendo investigado sob suspeita de ter acobertado 129 casos de abuso sexual em Los Angeles. Nos EUA, a organização Catholics United coletou dez mil assinaturas em um manifesto exigindo que ele não participe da escolha do novo Papa.

Mas Mahony resiste. E junto com ele, resistem os que acham que os pecados da Igreja devem ser acertados com Deus ou pela Igreja, como o cardeal William Levada. Este americano, que ocupou o mais alto cargo na Cúria Romana (de 2005 a 2012, foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), partiu em defesa de Mahony. "Existem alguns grupos de vítimas, para quem o suficiente nunca é suficiente, por isso temos de fazer o nosso trabalho da melhor forma que vemos... Mahony pediu desculpas por erros de julgamento cometidos. Eu acredito que ele deveria estar no conclave", escreveu.

Mahony se apresenta como vítima de perseguição. Em seu blog, ele escreveu: "Não me lembro de um momento como agora, quando as pessoas tendem a ser tão críticas e até mesmo hipócritas, tão rápidas para acusar, julgar e condenar ... O que aconteceu com a regra de dar aos outros o benefício da dúvida até que se prove o contrário?".

O ex-padre católico Tom Rastrelli - uma das vítimas de abuso sexual -reagiu com indignação num blog no Huffington Post: "A mensagem implícita para nós, vítimas de abuso, é: por que você (vítima) não pode simplesmente nos perdoar e pôr um ponto final nisso? As vítimas com quem eu falo querem justiça!"
Outro eliminado da lista de Izzo é o cardeal primaz da Irlanda, Sean Brady. Embora continue no comando da Igreja do país, o vaticanista diz que ele "foi praticamente demitido", tendo seus poderes diminuídos pelo Vaticano. Um documentário da BBC mostrou que Brady tinha nome e endereço de crianças que estavam sendo abusadas por um padre, mas não revelou o fato à polícia, nem aos pais das vítimas - escândalo que chocou a profundamente Irlanda. Ele, porém, participa do conclave.

Godfried Danneels, da Bélgica, também saiu da lista de papáveis de Izzo. Aos 79 anos, por pouco o belga não fica de fora do conclave: ele completa 80 anos, idade limite para votar, daqui a três meses. Conservador, o cardeal, que comandou durante três décadas a Igreja na Bélgica, foi flagrado recomendando a uma vítima de abuso sexual não divulgar o caso, até que o bispo agressor, Roger Vangheluwe, se aposentasse. A vítima gravou secretamente a conversa e divulgou para a imprensa. Depois, o bispo admitiu o abuso e se demitiu. Na gravação, o cardeal dizia: "Melhor esperar por uma data no ano que vem, quando ele vai renunciar. Não sei se haverá muito a ganhar fazendo muito barulho sobre isso, nem para você nem para ele".

O vaticanista italiano também descarta o cardeal Vigário Geral de Roma, Agostino Vallini, "que certamente é inocente, mas quem quando era bispo de Albanom não transferiu de forma justa um sacerdote que depois se matou". Ele elimina também dois outros cardeais italianos, Giuseppe Betori, atual arcebispo de Florença, e seu antecessor na cidade, Ennio Antonelli, que poderiam ser cobrados por casos de pedofilia sob a gestão deles.

- No caso de todos os cardeais que assumiram cargo episcopal na Itália, há um problema: a lei italiana não prevê a denúncia obrigatória (de um suspeito de pedofilia) - diz Izzo, para quem o único com maiores chances seria Angelo Scola, arcebispo de Milão.

Para o vaticanista, pelo critério das mãos limpas, os italianos em melhor posição seriam os da Cúria Romana, embora não haja uma figura de destaque.

Também houve denúncias de casos de pedofilia na diocese de Sidney, ocupada pelo australiano George Pell, outro cardeal integrante do conclave que poderia ser eliminado. Pell criticara Bento XVI um dia antes da renúncia ao dizer, numa entrevista à televisão australiana, que o Papa Emérito foi um professor brilhante, mas governar a Igreja "não era o seu forte".

PROGRESSISTAS X CONSERVADORES

Para Izzo, se a Igreja deve ir para as mãos de um Papa conservador ou progressista será uma questão marginal neste conclave histórico após a renúncia extraordinária de um Papa, algo que não acontecia há 600 anos. Até porque, segundo ele, a divisão entre conservador e progressista não é preto no branco.
- Ratzinger, considerado um conservador, inovou a própria figura do Papa, ao introduzir esta ideia de que um Papa não precisa esperar morrer para deixar o cargo. Isso é um ato progressista, embora eu ache que um pouco perigoso - opina.

Marco Politi, outro vaticanista em Roma, afirma que, sem dúvida, há diferentes correntes no conclave. Para ele, o problema é que depois de tantos anos de "conformismo" sob o comando de um conservador como Joseph Ratzinger, está difícil identificar quem é, de fato, reformador. Isto é, quem estaria disposto a enfrentar questões espinhosas como a crise da falta de padres, o debate sobre casamento de sacerdotes e o papel da mulher na Igreja.

- Não sabemos o quão forte são os reformadores no conclave ou como pensam os papáveis, porque nestes anos havia um clima de conformismo. Ninguém dizia nada diferente do que dizia Ratzinger - disse, em entrevista à rede de TV Euronews.
O americano John Allen Jr, autor de diversos livros sobre a Igreja Católica, entre eles, duas biografias de Joseph Ratzinger, disse ao GLOBO que é uma ilusão imaginar uma mudança progressista com o olhar de quem está fora da Igreja:

- Estes sujeitos (os cardeais) não vão estar sentados fazendo debates altamente ideológicos do tipo: devemos ou não ser contra o aborto? Devemos ou não aceitar casamento homossexual? Não, não são essas coisas que estão em jogo. Mudanças, como são definidas no mundo secular, não estão na mesa. Eleição de Papa é sobre mudança de tom, não de substância. Então, o que podemos esperar é isso: mudança de tom.

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