domingo, 31 de março de 2013

Índio de museu - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

 O Estado de S.Paulo - 31/03/2013

O conflito na ‘Aldeia do Maracanã’, no Rio, pôs em questão o nativismo brasileiro, criação do homem branco em cima de uma memória fantasiosa de Ceci e Peri

O desencontro entre os índios da chamada “aldeia do Maracanã” e o governo do Rio de Janeiro, no litígio pelo edifício abandonado do antigo Museu do Índio, indica uma nova característica das populações indígenas que sobreviveram aos cinco séculos de sua vitimização genocida. A muitos parecerá estranho que o grupo de 22 índios, oriundos de 17 diferentes grupos étnicos, constituam uma aldeia indígena verdadeira,como as conhecidas da maioria, depois de décadas de reportagens televisivas sobre índios do Brasil. Todos nós sabemos o que é uma aldeia de índios, mas não sabíamos que essa ocupação de um velho casarão também o era.

Este índio de agora, não é apenas o índio biológico e étnico que povoa as páginas de livros de história. É o índio cultural e político, situado no marco da modernidade, uma espécie de índio do futuro e não apenas índio do passado. Embora de carne e osso, é em boa medida um índio imaginário, nem por isso menos real e menos legítimo.Um índio cujas danças misturam movimentos corporais de tradições indígenas e não indígenas, com pinturas de corpo que são marcas tribais, com telefones celulares e câmeras fotográficas, que são adornos tribais de branco.

Aqueles índios formam pouco mais do que um albergue multiétnico, em casarão abandonado do século 19, dotado, no entanto, de uma função evocativa e identitária que não pode ser ignorada.Ainda que seja de dificílima compreensão porque foge da “receita” do que o índio “deve ser”. Procuram enquadrar-se na concepção estereotipada que do índio tem o branco, na verdade o índio genérico e sem identidade própria. Índio de museu. Porque é esse índio de ficção que tem obtido reconhecimento constitucional e legal do Estado brasileiro. Sem render-se a ele,o índio de verdade,não tem como reivindicar direitos. As populações de diferentes grupos humanos, quando deslocadas espacial e historicamente, se recriam a partir das condições que encontram no cenário de sua adversidade. O nosso imigrante italiano se reinventou italiano no Brasil. Era outro italiano, sendo o mesmo. É no marco de sua uniformidade fictícia, a de “índio”, que os índios podem assegurar-se a proteção legal que lhes permite lutar por sua diferença contra o índio genérico do branco. Pagam um preço, o da dupla personalidade, a do conflito interior que divide sua pessoa na disputa entre o falso índio do branco e o verdadeiro índio do índio.

O nativismo brasileiro, criação de branco em cima de uma memória fantasiosa de Ceci e Peri, está sendo questionado. O próprio índio quer escrever o seu enredo e desempenhar os papéis da trama que diz quem ele é e não é. O índio dócil e submisso da sujeiçã violenta e da catequese de amansamento tem sido apenas o dar-se a ver do vencido. Mas, índio morde e morde por legítimas razões auto defensivas. Se o índio chegou à história de escola primária como representante de uma das “três raças”, que não são três nem são raças, na constituição de uma nacionalidade dominante, fraterna e harmoniosa, no novo enredo ele desconstrói essa história inventada pelos que venceram e pelos que mandam.Estamos vivendo um momento de reprotagonização no processo histórico brasileiro. Não só índios se repropõem como sujeitos de direitos.Mas também outros grupos humanos que a ficção política de uma nação trirracial criada pelo Império e mantida pela República acomoda apertadamente na ideologia da brasilidade. O Brasil dessa ficção política de fundo racial vive sua crise e, provavelmente, seus últimos tempos.

De modo que o que para muitos pode parecer uma comédia, uma variante do permanent carnaval brasileiro, não regulado pelas demarcações cronológicas da Quaresma, constitui, na verdade, momento e expressão de germinação social e de reinvenção do Brasil. Não por acaso, com apoio de outros índios e de brancos,houve uma tentativa de invadir o verdadeiro Museu do Índio, em Botafogo. É nessa tentativa que está , muito provavelmente, a chave da compreensão da resistência do pequeno grupo indígena à desocupação e à demolição do velho e arruinado casarão que ocupam nas imediações do Maracanã.

Para nós,museu é museu.Para muitas pessoas, não só os índios,um museu, pelos objetos que contém, pode ser muito mais um templo do que uma casa de cultura. O que para muitos é uma obra de arte,para outros continua sendo um objeto de culto.Não é diferente para o índio. Um objeto de sua cultura, exibido num museu, não perde para ele as funções rituais e até sua dimensão sagrada. Não é incomum que índios em visita a museus fiquem chocados ao verem expostos objetos de sua cultura que a tradiçã omanda que fiquem longe dos olhos dos não iniciados ritualmente para sua manipulação cerimonial.

De modoque,nãoconstituipropriamente uma anomalia que esse grupo de indígena se congregue no que para eles é não só uma extensão do Museu do Índio, mas extensão também de suas aldeias pelos objetos que o Museu abriga e expõe,cuja significação identitária permanece.


JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR
EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA
USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE FRONTEIRA –
A DEGRADAÇÃO DO OUTRO NOS CONFINS DO
HUMANO (CONTEXTO)

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