sábado, 9 de março de 2013

Mazurca fogo - José Miguel Wisnik


 O GLOBO 09/03/2012

 

A Polônia pulsa nas ‘Mazurcas’ de Chopin e no ‘Príncipe Roman’ de Joseph Conrad

Minha amiga Rachel Gutierrez me deu de presente as “Mazurcas” de Chopin tocadas por Antonio Guedes Barbosa. É uma gravação do selo Kuarup. Rachel, escritora e musicista que eu vim a conhecer graças a esta coluna, que ela acompanha à distância com comentários infalíveis, sabe que eu estou escrevendo um longo ensaio sobre Chopin e me municiou com vários toques sobre o assunto, sendo este o mais precioso e surpreendente. A interpretação do pianista paraibano, morto prematuramente em 1993, está com certeza ente as melhores que já foram feitas, em qualquer lugar do mundo, dessas peças vivazes e profundas, enigmáticas, inspiradas livremente na memória das danças populares polonesas da região que circunda Varsóvia.

A escuta me animou a levar adiante umas ideias que eu venho associando faz tempo. Há muitos anos um amigo me mandou um conto de Conrad chamado “Príncipe Roman”. Conrad, como sabemos, chamava-se Jan Korzeniowski, polonês de nascimento que saiu pelo mundo como marinheiro e que se tornou um dos maiores escritores em língua inglesa. “Principe Roman” é a história de um aristocrata polonês que rompe com o compromisso de sua classe e de sua família com o Czar, durante o longo período em que a Polônia ficou sob o domínio da Rússia, da Prússia e da Áustria, e que adere à luta antirrussa durante o fracassado levante de 1831 (o mesmo ano em que Chopin partia definitivamente da Polônia em direção a Paris). Ao se engajar como voluntário nas fileiras do exército resistente, esconde a sua condição de nobre, recusando os privilégios que pudessem resultar disso. Mais ainda, assume a identidade do camponês que o acompanhava como servo, quando este morre em combate, fazendo-se passar por ele até o fim da guerra, que o leva como prisioneiro para a Sibéria durante anos.

Fiquei convencido de que a história do príncipe camponês era uma fábula representativa da mitologia polonesa, mesmo que Conrad a tivesse extraído de acontecimentos contados por seu avô como verídicos. Imagino que num país de forte tradição feudal e camponesa, riscado do mapa durante todo o século XIX, a burguesia nacional não teve papel relevante a representar no imaginário nacional, ao contrário dessa conjunção de nobre e camponês lutando contra o dominador estrangeiro. Ano passado, vasculhando uma livraria no bairro polaco de Chicago, topei com uma biografia do herói nacional Tadeuz Kosciuszko, que liderou por sua vez o fracassado levante antirrusso de 1794. O livro se chama “The peasant prince”, o príncipe camponês, e como nada indica que seu autor tenha pensado no conto de Conrad quando escreveu o livro, este vinha como mais um indício confirmador da insistência do mito. Curiosamente, Kosciuszko participara também como voluntário, em 1776, das lutas pela independência norte-americana, nas quais fez-se reconhecer pelo mérito, em curiosa analogia com o personagem de Conrad, do qual talvez seja uma espécie de modelo. É sabido que Kosciuszko deixou a Thomas Jefferson um considerável legado em dinheiro, a que tinha direito, para libertar e educar escravos negros norte-americanos.

A aura do nobre camponês acompanha as refinadas e cintilantes “Mazurcas” de Chopin. Nietszche fala, a propósito dele, de uma “liberdade principesca” que consiste em dançar entre as cadeias da convenção como só o pode “o espírito mais livre e mais gracioso”. A definição combina com outra, a do aristocrata estetizado (aristocrata democrata “que alcança a nobreza por um processo de autoeducação”) capaz de deslizar “sobre o chão em que nós afundamos” graças a uma leveza conquistada e livre de esforço visível. É como Lorenzo Mammì fala de Fred Astaire, sem deixar de mencionar Chopin. E é essa fluida liberdade dançante toda feita de gestos sonoros da memória camponesa que nós ouvimos de maneira rara nas “Mazurcas” tocadas por Antonio Guedes Barbosa.
Enquanto isso, acaba de ser lançada a “Poesia toda” de Paulo Leminski, acontecimento auspicioso. No seu livro “Polonaises”, incorporado a essa poesia completa, ele traduzia um poema-fragmento de Adam Mickiewicz, contemporâneo de Chopin, que podemos ler no espírito das mazurcas ou dos prelúdios chopinianos: “Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas,/ Na minha infância campestre, celeste,/ Na mocidade de alturas e loucuras,/ Na minha idade adulta, idade de desdita;/ Choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas...”.

Limpidez cintilante é o que eu ouvi ontem no show de Jussara Silveira no Sesc Anchieta, aqui em São Paulo, mazurca-fogo de canções brasileiras, angolanas e portuguesas, presentes respectivamente nos seus mais recentes CDs, o maravilhoso “Ame ou se mande”, “Flor bailarina” e “Água lusa”, este último a sair em breve.


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