O GLOBO - 09/03/2013
A
verdade não é uma bastarda pagã. Ela é filha da natureza com as
circunstâncias, e afilhada de nossos interesses e opiniões. Nenhuma
imagem, por mais concreta que seja, terá sempre o mesmo significado em
diferentes circunstâncias.
Presente do governo francês ao povo
americano, a Estátua da Liberdade, na entrada do porto de Nova York, é
um belo e nobre símbolo de princípio consagrado pela cultura ocidental.
Mas idêntica Estátua da Liberdade, diante de shopping na Barra da
Tijuca, é apenas ridícula manifestação de mimetismo e arrogância
sub-culturais, que nos quer fazer crer que ali estamos em Nova York.
Na
história política do continente, Simon Bolívar foi tratado como
aventureiro oportunista pelo insuspeito Karl Marx. E, no entanto, por
seus feitos nas guerras pela independência da América hispânica,
tornou-se símbolo do anti-imperialismo contemporâneo e pai da pátria
venezuelana, assim consagrado por Hugo Chávez.
Assim também, o
próprio Hugo Chávez não pode ser tratado como mero e tradicional
caudilho populista, imagem que nos vem à mente quando lembramos de seus
gestos demagógicos, de sua carnavalização do poder e sobretudo de seus
atos autoritários (embora confirmados pelo voto popular).
Quando
Chávez vai a Cuba e elogia os Castro, não está abraçando uma ditadura
hereditária que não implantou em seu país. Ele sabe que Cuba não tem
mais nenhuma importância no jogo de poder internacional, mas precisa
saudar o velho símbolo do anti-americanismo, ficar do lado que provoca a
fúria do lado de lá. O ódio às vezes pode ser uma moeda de troca nos
negócios internacionais.
O regime chavista manteve no país uma
inflação alta, quase dobrou o valor da dívida pública, criou condições
para o aumento da violência urbana, pôs a Venezuela na dependência
exclusiva do petróleo, tentou controlar a imprensa. Mas também quase
triplicou seu PIB per capita, diminuiu a pobreza extrema de 20 para 7%
da população, baixou a taxa de desemprego pela metade, não fez nenhum
preso político. E não se tem notícia de corrupção, roubalheiras
praticadas pelo líder do regime.
Nenhum caudilho populista,
apenas inescrupuloso ou demente, se interessaria tanto por seu povo,
sobretudo pelos mais pobres. Nem seria tão amado por ele, do jeito que
Chávez foi.
No fundo, Hugo Chávez foi uma caricatura do que
poderia ser a reação às evidentes frustrações causadas pela democracia
representativa em nossos países, com seus Congressos de espertos e
insensíveis legisladores, quase sempre corruptos, desinteressados da
população. Em quase toda a América Latina, os Executivos nacionais têm
merecido muito mais respeito do que seus Legislativos. E portanto mais
poder.
Farto de tanta teoria sobre seu trabalho, Pablo Picasso
disse um dia que "todo mundo fala em ‘compreender a pintura’, mas
ninguém fala em ‘compreender o canto dos pássaros’". Foi a observação
dos homens que fez o canto dos pássaros ser belo. Talvez tenhamos que
desvencilhar a política de todas essas teorias ideológicas, para
apreciar o que de verdade está por trás dela, em benefício da população.
*****
Há
dez anos os cineastas brasileiros lutam pela criação do Vale Cultura,
mecanismo público em que o trabalhador de carteira ganha o direito de
gastar, sem custo para ele, 50 reais mensais em consumo cultural, indo
ao cinema, ao teatro, à livraria, aos concertos que bem entender. O
centro das políticas públicas para o setor passaria a ser o interesse do
consumidor e não mais, como sempre foi, o do produtor.
Com a
notícia de que a ministra Martha Suplicy está incluindo, nesse consumo
incentivado, o direito de uso do Vale Cultura para a assinatura de
televisão paga, nossos esforços de dez anos foram frustrados. Mais uma
vez, acordamos de um sonho para a dura realidade em que os mais
poderosos acabam sempre levando tudo, mesmo que não precisem de nada.
Em
pouco tempo, a televisão paga no Brasil passou de 8 para as atuais 20
milhões de assinaturas. E só tende a crescer, como signo de mobilidade
social e ascensão de classe. Um crescimento que, por enquanto, só
favorece a produção audiovisual estrangeira, a maioria absoluta de sua
programação.
No mundo inteiro, a televisão compensa seu poder
tecnológico na oferta de consumo cultural sendo a principal fonte de
financiamento de filmes. Isso acontece dos Estados Unidos à Ásia
(incluindo a China), da Europa a grande parte da América Latina (como
Chile e Argentina). Sendo o primeiro país do mundo em que o cinema vai
ajudar a financiar a televisão, o Brasil será certamente objeto de
gargalhadas nos próximos encontros internacionais do audiovisual.
Conhecendo
o passado político de Martha Suplicy, temos esperança de que essa
notícia seja um boato e que o Vale Cultura vá beneficiar apenas os
produtores brasileiros de cinema, teatro, música, literatura, etc. Os
que de fato precisam dele.
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