sábado, 2 de março de 2013

Verdade - José Miguel Wisnik


Elson Costa é um dos militantes de esquerda desaparecidos na ditadura

Acabo de chegar de uma sessão da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”, na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, onde fui, junto com outros familiares, dar um depoimento sobre meu tio Elson Costa, sequestrado, torturado e assassinado pelo aparato paramilitar da ditadura em 1975. Algumas comissões estaduais estão acontecendo, em contraponto com a Comissão Nacional da Verdade. Em São Paulo, a Comissão tem levantado, por exemplo, elementos importantes sobre a participação de empresários no esquema da Operação Bandeirantes. Já falei sobre Elson Costa em uma das minhas primeiras colunas aqui. Ainda é cedo para retornar ao assunto, enquanto aguardamos para saber a que verdades as Comissões chegarão ou não. Quero fazer isso para valer, e no momento certo. Mas ao mesmo tempo os nervos estão agitados, e é difícil para mim falar hoje de algum assunto que não seja este.

Elson Costa fez parte do grupo de dirigentes do Partido Comunista Brasileiro que foram mortos quando a guerrilha tinha sido vencida e a força repressiva correspondente passou a ser aplicada sobre grupos, como o PCB, que não tinham optado pela força armada, e que acreditavam ser possível isolar a ditadura entrando em todos os nichos que representassem vias democráticas. Meu tio editava um órgão de imprensa operária cuja gráfica funcionava numa caixa d’água. A desproporção entre essas ações políticas e o modo como seus agentes foram eliminados com requintes de perversidade (dos quais vou poupá-los agora) diz tudo sobre o caráter fascista da máquina repressiva da ditadura militar. Tratou-se de um rito de erradicação sumária que se realimentava pela tortura.

É possível elucubrar sobre a lógica que comandou essa “obra tardia” da repressão militar, quando esta não pareceria mais tão necessária militarmente. Cálculo frio do golpe final sobre o inimigo, “racionalidade” levada à última instância no exame das forças adversas, extensão “natural” da luta contra a luta armada? Ou gozo da violência em seu estado quimicamente “puro”, a máquina de tortura e morte replicando a si mesma, infinita enquanto dura, aspirante ao mal absoluto? O grupo que vivia disso quis mostrar serviço, como que a provar a necessidade de sua própria sobrevivência funcional? O sucesso subiu-lhe à cabeça?
Ou constatou que o PCB era o verdadeiro detentor da verdade histórica, que nele estava o fermento que levaria ao final da ditadura pela via não da luta armada mas da pressão das forças democráticas, como preferiu sustentar, hoje, uma militante partidária?

Só a arte consegue sondar a verdade das múltiplas versões, atravessar o seu entrelaçamento não acabado, dar-lhe a volta paradoxal, paródica, trágica, oxigenando a constatação perturbadora de que não há, a rigor, uma Verdade final sobre a verdade, sem nem por isso deixar de aplicar golpes certeiros. Felizmente li, faz pouco tempo, a novela “Estrela distante”, de Roberto Bolaño, depois de ouvir falar tanto dele. É uma narrativa alucinante, hilariante, contundente, terrível, sinistra, sobre os desaparecimentos de pessoas no Chile de Pinochet. Como se trata de um país letrado, tudo ali envolve o literário: oficinas de poesia cujos frequentadores e frequentadoras vão sumindo e reaparecendo ou não, sob formas que estão entre o rumor, o rebate falso, a controvérsia, o exílio presumido, o esconderijo, o assassinato político. A mudança de identidade obrigada assombra as relações, mas salta em meio a elas a do impostor infame, o artista fascista que se transmuta de falso poeta autodidata chavecando frequentadoras de oficinas de poesia em ícone espetaculoso da direita, e cuja “obra de arte total” é feita das acrobacias aéreas com que desenha no céu versos patéticos de fumaça, complementados com torturas, crimes seriais e fotografias. Num coquetel constrangedor entre seus pares, em que leva ao limite a sua poética radical de estetização do mal, expõe fotos de corpos mutilados assassinados pela ditadura e por ele mesmo, pegando-os de surpresa com a visão inominável daquilo que todos sabem que não devem admiti-lo. Uma espécie de Exposição da Verdade pela culatra.

Quase todos os países que passaram pelos crimes da ditadura passaram, em contexto democrático, por alguma maneira de admissão, elaboração e simbolização da verdade. O Brasil, para variar, vem na rabeira do processo. Porque o torturador é também uma forma grave de desaparecido político, com a diferença de que os mortos da ditadura sustentam a sua verdade, na sua ausência, enquanto que a ausência pública do torturador é uma mentira histórica. Sabemos que não há Verdade, com maiúscula. A não ser quando há mentira maiúscula.

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