domingo, 17 de março de 2013

Xará de coisa - Humberto Werneck

Publicado em:

O Estado de S.Paulo

Se você se chama Lúcio e ouvir dizer que sua carne é muito apreciada, não vá logo se sentindo o tal. Considere a possibilidade de que o objeto da consagradora observação seja um xará seu, o lúcio, cujo nome se escreve assim, com minúscula, não por modéstia mas por tratar-se de substantivo comum que designa um tipo de peixe, aliás de boa família, a dos esocídeos, encontrado em rios e lagos europeus - cuja carne, informa o dicionário Houaiss, "é muito apreciada", tanto ou mais, quem sabe, que a dos Lúcios com maiúscula.

Agora suponha que o camarada (você?) se chama Guilherme e alguém lhe conte que os carpinteiros fazem com o guilherme o que bem entendem. Não se ofenda. Guilherme, no caso, é uma "ferramenta usada para fazer os filetes das portas, das junturas das tábuas, frisos de caixilhos etc." Sem você, ou melhor, sem guilherme, a carpintaria não seria o que é.

Já contei como costumo me perder quando vou ao dicionário, e eis aqui uma ilustração de minhas errâncias lexicais. Fui saber o que é "guilho" (já esqueci) - e o que me apareceu imediatamente acima do verbete, no Houaiss eletrônico? O guilherme, substantivo proveniente do francês guillaume (que é como se chamam os Guilhermes de lá), incorporado à língua portuguesa desde o ano de 1713. Foi aí que me perdi de vez, na insana garimpagem de nomes próprios que, sem desdouro de seus portadores, sejam também comuns. Não sei se com isso ganhou alguma coisa a minha cultura, como se sabe escassamente mobiliada, mas pelo menos fiquei em condições de poupar você de se embrenhar também em tão vadia investigação - até porque ela desemboca às vezes em surpresas pouco agradáveis.

Se você se chama Bernardo, por exemplo, saiba que o nome escolhido por seus pais pode significar - quem diz é o Houaiss, não eu - "indivíduo gordo ou estúpido". Ou, em Portugal, ser sinônimo "jocoso" (qual a graça?) de pênis. Console-se com o Gregório, que carrega a mesma desdita e a quem, aliás, o dicionário reserva pecha ainda mais constrangedora, sobre a qual prefiro silenciar.

Estela, além de estrela, designa uma "coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias". Cecília pode ser um arbusto e, ao contrário de todas desse nome que conheço, as serpentes também chamadas "cobra-cega" e "cobra-de-capim". Já beatriz é um peixe - mas não, como o lúcio, de carnes abordáveis, possuidora que é de "espinhos venenosos nas nadadeiras dorsal, anal e pélvica". Cuidado com a beatriz, portanto. O gonçalo, por seu turno, vulgo "bagre-de-água-doce", não faz mal a ninguém.

Ainda quando não vegetem, ao reino vegetal pertencem a marcela, a carolina, a mariana e angélica, todas elas arbustos. Sabia que a mônica é uma variedade de mandioca? E que o polivalente filipe tanto pode ser duas sementes grudadas como uma ave pardacenta e, na Bahia, um "saco, geralmente pequeno e de couro, no qual se guarda comida"? Um saco, o filipe!

Bete é "certo jogo infantil originado do beisebol". O estevão, sem o circunflexo que o humanizaria, pertence a dois reinos, o vegetal e o animal, podendo ser arbusto ou ave, esta de "vocalização alta e maviosa" e conhecida também por uma dezena de outros nomes, entre os quais "esteves", "pixororém" e "tico-tico-guloso".

A marta, além do mamífero de pele tão valorizada, é uma uva, e não qualquer: americana. Quanto à maria, esta você não só conhece como, não me entenda mal, certamente já comeu: aquele biscoito "de formato redondo e espessura muito fina". Redondo como o luís, a conceição, o mauro e nicolau, que são moedas, as três primeiras de ouro, e a última, coitada, de ordinário níquel.

Antes que você pergunte: não há nada que se chame Humberto com minúscula. Mas me lembro do corretor ortográfico, lusitano, de meu primeiro computador, um 286 movido a lenha. Quando não reconhecia uma palavra, oferecia alternativas. No caso de "Humberto", a sugestão era... "jumento". Ainda não sei se fico arrasado ou envaidecido.

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