O Globo
Suspeito que Marco Feliciano não seja um homem feliz. ‘Infeliciano’ não deve dormir em paz
Outro
dia, meu neto de 7 anos me disse excitado que tinha um presente para
mim. Era uma lata de Coca-Cola que havia encontrado com meu nome,
Carlos, inscrito nela. Tive a sensação de que meu neto havia-me achado
no meio da multidão e me propunha celebrar minha existência.
Como
quando nomeamos alguém estamos identificando sua singularidade, me dei
conta de que um dos produtos mais universais do planeta, um dos signos
fundadores da globalização, havia sacado a necessidade de reconhecer a
existência do indivíduo e sua diferença. A humanidade não é uma massa
anônima e informe, mas o encontro entre seus indivíduos, a única coisa
concreta que existe. O resto (língua, sociedade, moeda, nação, estado,
cultura, o que mais for) são abstrações necessárias que inventamos para
poder melhor conviver com o outro.
É claro que essa operação de
marketing do produto que minha geração, em sua juventude irreverente e
bem-humorada, chamava de “a água suja do imperialismo”, é apenas uma
fantasia que não vai melhorar a vida de ninguém. Mas é significativo que
a marca máxima de um modo de vida planetário reconheça a necessidade de
lembrar nossa individualidade, nossa diferença, nossa singularidade.
Somos
indivíduos responsáveis pelos outros e essa responsabilidade começa
pelo respeito ao que o outro é ou quer ser. A democracia é o único
regime político em que esse comportamento se encontra em seu cerne. Sem
ele, ela perde o sentido. Segundo Tocqueville, o grande pensador da
democracia moderna na primeira metade do século 19, o regime democrático
é uma ditadura da maioria, abrandada pelos direitos de manifestação das
minorias. É tão simples e profundo quanto isso.
Nosso Congresso
Nacional está deixando que essas ideias indiscutíveis sejam negadas pela
ação nefasta do deputado Marco Feliciano, à frente da Comissão de
Direitos Humanos. E esse desastre não tem apenas o deputado como único
culpado; grosso modo, a câmara inteira é responsável pelo grave erro.
A
democracia representativa fica comprometida quando os partidos dão
prioridade a seus arranjos funcionais, em prejuízo da representação
popular. Apesar de grosseiro, medieval e inaceitável, o deputado tem o
direito de pensar como quiser, para agradar seus eleitores específicos.
Mas não tem o de impor, por delegação de seus pares, as consequências
segregadoras desse pensamento sectário à população inteira, que inclui
os que são discriminados.
Todos os partidos deixaram que isso
acontecesse quando negociaram, segundo seus interesses táticos, a
formação das diferentes comissões no Congresso. A culpa não é só do
partido de Feliciano, o PSC, que o indicou; os outros também preferiram o
conforto próprio, em detrimento da segurança social da população.
Quando isso aconteceu, onde estavam o PT e seus “progressistas”? Por
onde andavam os “democratas” do PSDB? Que faziam os “socialistas” do
PSB? E os “liberais’ do DEM? O único congressista que vi se manifestar
desde a primeira hora, com coragem e firmeza, sem se preocupar com as
conveniências regimentais da Casa, foi o deputado Jean Willys.
Suspeito
que Marco Feliciano não seja um homem feliz. Ele deve viver atormentado
pelos fantasmas do porre de Noé, do pecado de Cam, da maldição divina
sobre a África e os negros. Feliciano não pode gastar relaxado o dízimo
de seus fiéis, enquanto houver no mundo aborto, homossexuais, casamento
gay e gente que não pensa como ele. “Infeliciano” não deve dormir em
paz.
Mas confesso que não admiro nem um pouco o modo de reação de
alguns ativistas contra ele. Numa democracia, não se deve fazer
política invadindo reuniões, subindo nas mesas, agredindo quem passa
pela frente, impedindo o interlocutor de se manifestar. A democracia é
também um processo civilizatório, como foi a justa manifestação recente
na ABI, organizada por Jean Willys, com a presença de Caetano Veloso,
Wagner Moura, Preta Gil e tanta gente que lotou aquele auditório para
discutir o assunto.
É evidente que hoje, no mundo inteiro,
vivemos uma grave crise da democracia representativa. Talvez pelo
crescimento da população em todos os países; talvez pela distância cada
vez maior entre representantes e representados; talvez até mesmo pela
crescente superação do poder do estado pela força natural da sociedade.
Não sei encontrar solução para essa crise. Mas ela não pode ser a
democracia direta que nos leve à aventura irresponsável do populismo,
nem o voto distrital que torna clientelista o resultado de uma eleição,
eliminando o debate ideológico que organiza o futuro. É preciso começar a
discutir uma reforma política democrática que contemple todas essas
novidades.
Para certos crentes, nosso mundo real é sempre
provisório, o paraíso se encontra muito mais à frente, bem adiante de
nós. Depois é que é sempre bom e, para chegar lá, devemos suportar dor e
sofrimento, a fim de nos tornarmos merecedores da graça no futuro e
punirmos os que ousam desejar ser felizes por aqui mesmo. Mas temos o
direito de exigir que nos deixem ser o que somos, que nos garantam, aqui
e agora, nossa felicidade de cidadãos, nossa “felicidadania”.
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