segunda-feira, 8 de abril de 2013

CASAMENTO GAY

 Veja - 08/04/2013

A REVELAÇÃO PÚBLICA DE DANIELA

Ao anunciar a união com uma jornalista de televisão, a quem chama de esposa, a cantora baiana Daniela Mercury tomou obrigatória a discussão sobre o casamento gay no Brasil.

"Seja o que Deus quiser, Malu.” Daniela Mercury olhou para a companheira, em um quarto de hotel de Lisboa, onde esteve na semana passada para uma série de shows, tocou no ícone compartilhar do Instagram e pôs no ar uma colagem de fotos dela com a jornalista Malu Verçosa, editora na TV Bahia, afiliada da Globo. No cabeçalho, escreveu a frase que provocaria mais de 17000 reações de “curtir” coladas à revelação: “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”. E o Brasil inteiro ficou sabendo que ela saíra do armário, como se diz no jargão popular para definir a pessoa que assume sua homossexualidade, e que decidira trocar alianças — mas ainda não assinar papéis no cartório — com a namorada recente, de apenas dois meses e meio (na cronometragem oficial, descontado o período de segredo). Houve estardalhaço — saiu no Jornal Nacional. Daniela — mãe de dois filhos já adultos, do primeiro casamento, e de outros três adotados, do segundo, ambos relações convencionais — nunca admitira sua orientação sexual. Seja o que Deus quiser, portanto.

Mas Deus vai querer? Se depender da hierarquia das igrejas que falam em nome Dele, a resposta será um sonoro “não" dos líderes evangélicos brasileiros, um “sim” enfático dos anglicanos e um “sim” condicional dos católicos. “Se Deus, na criação, correu o risco de nos fazer livres, quem sou eu para me meter?”, foi a reação do jesuíta Mario Bergoglio, o papa Francisco, sobre o casamento gay em seu diálogo com o rabino Abraham Skorka (veja a reportagem na pág. 94). Bergoglio elabora sua resposta e diz que o papel do pastor é alertar o fiel para os perigos de pecar e nunca induzi-lo a determinado tipo de ação na vida privada. Mas pelo menos até que Ele a convoque para um acerto de contas, Daniela tem pouco com que se preocupar com as repercussões religiosas de seu anúncio. O casamento gay tem hoje mais implicações de ordem prática do que de consciência.

Depois do anúncio, Daniela divulgou uma nota na qual citou o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Escreveu a cantora: “Numa época em que temos um Feliciano desrespeitando os direitos humanos, grito meu amor aos sete ventos. Quem sabe haja alguma lucidez no Congresso Brasileiro”. Ao misturar seu relacionamento com política, Daniela prestou um desserviço ao mesmo tempo ao romantismo e à sua seriedade de propósitos. O presidente do STF, Joaquim Barbosa, ajudou a por a questão em sua real perspectiva durante uma palestra na UNB: “É simples: o deputado Marco Feliciano foi eleito pelos seus pares para assumir determinado cargo dentro do Congresso Nacional. Perfeito. Agora, a sociedade tem direito de se exprimir contrariamente à presença dele nesse cargo. Isso é democracia”.

É natural e positivo que as instituições tratem as mudanças comportamentais radicais com a cautela devida. É natural e positivo também que as pessoas possam ter tempo para se acostumar com esses novos ordenamentos sociais e avanços comportamentais. É assim que as mudanças se legitimam, superando a intolerância, que se dilui com o tempo em formas cada vez mais brandas de rejeição até se tomarem invisíveis. Confrontada com a questão do casamento gay, a Suprema Corte dos EUA optou pela cautela. Pediu mais tempo para que os juizes avaliem todas as repercussões de um vez mais provável reconhecimento legal de uma situação de fato.

No Brasil, o STF reconheceu a união estável gay em 2011. A partir de parceiros do mesmo sexo numa relação contínua e duradoura, com o objetivo principal de constituir família, podem receber herança em caso de morte de um dos dois, receber pensão alimentícia, optar pela comunhão parcial de bens, e também adotar crianças. Em seis estados brasileiros (Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo) os cartórios já fazem o casamento civil homossexual, o que põe os casais juridicamente um degrau acima do status de união estável. Cerca de 400 casais gays brasileiros conseguiram a certidão de matrimônio desde o “sim” do STF. Esse número só tende a crescer.

É discernível uma tendência evolutiva rumo à aceitação no que diz respeito aos homossexuais. O que já foi visto como doença física no passado foi em uma fase posterior encarado como comportamento desviante provocado por defeito de criação — ou seja, produto de lares com mães superprotetoras e pais ausentes e violentos. As concepções erradas davam origem às reações sociais desastradas. A "rebelião de Stonewall”, os seis dias de confronto entre policiais e gays, em Nova York, ocorreu há pouco mais de quarenta anos. Desde então os gays deixaram de ser caso de polícia. Os estudiosos desvendaram o peso da determinação genética, o que esvaziou as falsas considerações morais sobre eles. Recentemente a homossexualidade tem sido descrita como uma adaptação evolutiva da espécie. Isso significa que muitas sociedades não apenas deixaram de ser hostis aos gays como passaram a ver contribuições positivas para o grupo na existência deles.

“A homossexualidade representa diversidade e ela é sempre positiva para a sociedade”, diz Edward Wilson, o grande biólogo americano de Harvard. autor de um livro recente, A Conquista Social da Terra, que funde de maneira inédita as análises genéticas e culturais do comportamento humano (veja a Carta ao Leitor, na página 12). Wilson põe a homossexualidade em campo diametralmente oposto, por exemplo, ao do incesto, este, sim, um desvio comportamental que não apenas abala o edifício moral das sociedades como empobrece a diversidade genética tão necessária para a sobrevivência sadia da espécie humana. Wilson diz que isso explicaria as razões da crescente aceitação da homossexualidade em contraste com a existência consentida do incesto somente em alguns pontos isolados da África e da Ásia — ainda assim com aceitação apenas ritualística em casamentos de chefes tribais. O mesmo processo sociogenético-cultural que, como demonstra Edward Wilson, vem chancelando a homossexualidade atua fortemente na rejeição da pedofilia e da poligamia. O que a biologia evolutiva constatou pelo método científico as pessoas percebem no cotidiano. Quanto mais jovem o grupo, menos seus integrantes consideram homossexualidade um assunto polêmico. Os jovens em quase todas as partes são cada vez mais o que os sociólogos chamam de “gender blind” — ou seja, eles olham uma pessoa, percebem que tipo de roupa ela usa, que corte de cabelo, mas se a pessoa é gay ou não é um ponto que não chama atenção.

O casamento gay coloca um desafio de outra ordem. Não se trata mais da simples aceitação pelo grupo de adolescentes ou jovens adultos — mas do reconhecimento pelas instituições de que os direitos civis podem ser automaticamente aplicados aos relacionamentos homossexuais duradouros. Isso é mais complexo. Esse processo exige que vanguardas e maiorias conservadoras realizem uma tensa dança do acasalamento até que a intolerância se dissolva em rejeição e essa em aceitação legal — o que não significa que os dois lados vão despeitar um dia depois da aprovação da eventual legalização do casamento gay concordando sobre todas as questões. Mas esse processo de negociação é inevitável.

É da natureza humana que as minorias liderem as transformações, na vanguarda, e que as maiorias, sempre mais apegadas ao que já existe, se incomodem. Impossível é fugir da existência de uma novidade que exclui a indiferença. Foi assim com o divórcio e com o movimento em defesa do voto feminino, no início do século XX, nos EUA e na Inglaterra. As mulheres já tratavam de política dentro de casa, opinavam sobre o cotidiano com o marido — mas o salto só se deu com a aprovação legal do voto. É o que ocorre agora com o ingresso do casamento gay nos tribunais.

Se a aprovação da união homossexual fosse simplesmente a institucionalização de uma postura que já estava acontecendo entre quatro paredes, seria mais fácil crer que essa transformação se daria de modo ainda mais acelerado. Mas há um complicador. Como estender aos gays as proteções legais dadas ao casamento pelo simples fato de ele, ao fim e ao cabo, propiciar a perpetuação da espécie pela procriação? As pesquisas de opinião no Brasil mostram que nem mesmo a adoção de crianças ou o recurso a barrigas de aluguel ou inseminação artificial demovem a maioria heterossexual da convicção de que os casais gays são incapazes de criar um lar estável. Nos EUA a resistência é bem menor, mas a questão ainda está longe de ser unanimidade. “Parece-me que os gays estão lutando pelo casamento. Eu receio que isso signifique rebaixar o que é o casamento”, disse o ator inglês Jeremy Irons ao site noticioso Huffington Post.

Além da intolerância e agressividade dos militantes, há descontentamento de bom número de pessoas com a redução de questões éticas de alta complexidade — caso também do abono e da eutanásia — a uma simples luta por direitos. Escreveram os especialistas em ética Claire Andre e Manuel Velasquez: “Muitas controvérsias morais hoje se expressam na linguagem dos direitos. Há uma explosão de recursos pelos direitos dos homossexuais, direitos dos prisioneiros, direitos dos animais, direitos dos não fumantes e dos fumantes, direitos dos fetos e direitos dos trabalhadores”. O reconhecimento do direito dos homossexuais perante as leis é, portanto, apenas um aspecto de uma questão social de conseqüências ainda não totalmente conhecidas. Mas apenas fingir que o novo não existe é insuficiente para preservar o velho.
 Com reportagem de Álvaro Leme, Bela Megale, Carlos Giffoni, Carolina Melo e Kalleo Coura.

E pensar que já foi assim...

Cada sociedade tem seu próprio tempo para maturar (ou não) mudanças sociais. Nos EUA, ao contrário do Brasil, a aceitação dos gays vem disparando — mas isso é recente

É um caso raro, talvez único: o presidente dos Estados Unidos assina uma lei e, depois de apear do poder, diz que ela é inconstitucional. Em 1996, pouco antes de concorrer à reeleição, Bill Clinton sancionou a lei que define o casamento como união "entre um homem e uma mulher". Queria o voto dos conservadores e temia desagradar aos liberais, mas assinou — na calada da noite, faltando dez minutos para 1 da madrugada, sem foto nem cerimônia, mas assinou. Ganhou a reeleição, cumpriu seu segundo mandato e, no mês passado, defendeu a ideia de que o documento que leva sua assinatura fere o princípio da igualdade entre os cidadãos da Constituição.

A inflexão de Clinton se explica numa aritmética elementar. Em 1996, só 27% dos americanos apoiavam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, são mais da metade. O apoio cresce tanto que a Suprema Corte, numa audiência pública sobre a constitucionalidade do casamento gay, deu a impressão de que prefere não legislar sobre o assunto, deixando que cada estado decida o que julgar mais apropriado. A decisão final da Corte sai até junho. Pode deixar o assunto para os estados, como transpareceu na audiência, mas pode surpreender, aprovando o casamento gay para o país todo. Nem os militantes gays ficaram incomodados com a aparente cautela dos juízes, pois, cada vez que sai um plebiscito sobre o assunto, vencem. Em novembro, ganharam em quatro estados: Washington, Maine, Maryland e Minnesota. (Mais a eleição, por Wisconsin, da primeira senadora abertamente gay.) A revista Time colocou na capa um casal homossexual beijando-se na boca sob a seguinte chamada: "O casamento gay ganhou. A Suprema Corte ainda não decidiu, mas o país já".

Cada sociedade tem seu ritmo próprio para aceitar (ou não) novos comportamentos sociais. No Brasil dos anos 50, o cardeal de São Paulo, dom Carmelo Motta, achava que a aprovação do divórcio era motivo para pegar em armas, e as desquitadas eram comparadas com "mulheres da vida". Até o fim dos anos 60, os gays americanos se reuniam às escondidas em bares que pagavam propina à polícia para evitar batidas. Percorreram uma longa trajetória em busca de aceitação. Até 2004, a maioria dos americanos era contra o casamento homossexual. Desde então, o apoio entrou numa espiral ascendente. Por dois motivos. Os jovens que estão chegando à idade adulta são francamente favoráveis aos gays. O outro motivo é que as pessoas mudam de ideia, inclusive as mais velhas. Na "geração silenciosa", formada pelos nascidos entre 1928 e 1945, apenas 17% apoiavam o casamento gay há dez anos. Hoje, são 31%. Pois é, as coisas mudam devagar, mas mudam tanto que fazem até presidente dizer que assinou lei inconstitucional.

André Petry de Nova York.

Contra a "engenharia social"

Mais da metade dos franceses não vê com bons olhos a instituição do casamento gay. Mas o movimento não é reacionário: conta com homossexuais e tem algo de 1968.

Em maio de 1968, Paris foi palco de manifestações estudantis contra a velha ordem. "A imaginação no poder" e "Seja realista, exija o impossível" eram dois dos slogans que transbordaram para países do Ocidente e da América Latina, com variações locais que sopravam na mesma direção de modernizar hábitos — e, no extremo, transformar o sistema. O arco aqui ia da ressurreição do anarquismo à improvável mutação do marxismo em ideologia libertária. Maio de 1968 transformou as relações familiares e amorosas, mas propiciou o surgimento de grupos terroristas e causou a substituição dos paralelepípedos por asfalto nas ruas parisienses, a fim de evitar que os estudantes os arrancassem para jogar nos policiais. Uma pena do ponto de vista estético. Quase meio século depois, as maiores manifestações ocorridas em Paris parecem ir na direção contrária em relação a novidades comportamentais. São contra a legalização do casamento gay nos moldes propostos pelo governo. Uma delas reuniu quase 1 milhão de pessoas, em janeiro. A outra, realizada em março, mobilizou peno de 500 000 cidadãos e acabou em pancadaria. depois que um grupo tentou sair dos limites geográficos estabelecidos pelas autoridades. Agora, protestos menores e diários pressionam o Senado a emendar o projeto de lei aprovado pelos deputados.

O movimento, contudo, não pode ser definido como reacionário, embora a Igreja seja forte patrocinadora. Não é incorreto dizer que em diversos aspectos, ele é fruto de 1968. Sua líder, por exemplo, é a comediante Frigide Baijot (trocadilho com o nome da atriz famosa que significa Frígida Doidona) — católica, mas não uma carola de bigode ligada ao Opus Dei. Esse movimento abriga famílias com recasamentos, aglutina homossexuais avessos ao padrão heterossexual e conta com a simpatia de mais da metade da população, em boa pane desobediente aos ditames do Vaticano. Seus integrantes não são contrários à união de gays perante a lei. O que não querem ver aprovada é uma legislação que iguale casais homossexuais a heterossexuais, em especial quanto à reprodução médica assistida. Não acham bom que bebês nasçam de dois pais (por meio de barriga de aluguel, obviamente) ou de duas mães, porque essas crianças teriam problemas psicológicos. A lei abre brecha para os gays "gerarem" filhos. "Ao abolir a distinção entre héteros e gays, no que se refere à reprodução, o governo mostra o seu viés autoritário. O nome disso é engenharia social. Viva a diferença!", diz Frigide Baijot. Parece a fala de uma manifestante de 1968.

Mario Sabino, de Paris.


Maiorias e Minorias 

 

Uma reportagem desta edição de VEJA fala das ondas de choque provocadas pela decisão da cantora baiana Daniela Mercury de, depois de dois casamentos convencionais, proclamar publicamente pelo Insta-gram sua paixão por uma mulher, Malu, a quem chama de esposa. Se havia alguma possibilidade de a questão do casamento homossexual no Brasil ficar restrita aos militantes e seus adversários da bancada religiosa do Congresso, ela se evaporou na quarta-feira passada. O post de Daniela espalhou-se rapidamente pelas redes sociais, virou notícia no Jornal Nacional e na rede internacional CNN, onde a cantora já foi descrita como a “Madonna brasileira”. Daniela colocou o assunto no horário nobre da televisão brasileira e, mesmo subtraindo o senso de oportunismo de promoção pessoal, a tendência agora é que a discussão se alastre.

O assunto é complexo e convida à discórdia. Pessoas sem nenhum sentimento de rejeição aos homossexuais são contra o reconhecimento legal da união marital entre indivíduos do mesmo sexo. Boa parte se irrita mesmo é com a agressividade de militantes dos movimentos gays e sua fúria implacável dirigida a quem quer que ouse divergir minimamente deles. Mas é fato que muita gente intelectualmente honesta, despida de dogmas religiosos e indiferente ao tipo de atividade sexual que adultos pratiquem consensualmente entre quatro paredes, não vê com naturalidade a união homossexual ao amparo da lei. São pessoas que dificilmente dariam seu apoio a uma mudança no artigo 226 da Constituição Brasileira, no qual está estabelecido que, “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”.

A reportagem de VEJA contribui para o debate racional do tema. Ela lembra que o racismo, infelizmente, sobreviveu mesmo depois de o conceito de raça como critério de diferenciação humana ter sido destroçado pelos avanços genéticos recentes. Por isso, é de esperar que a condenação da homossexualidade continue em certos círculos, a despeito da constatação de que ela é apenas uma adaptação da espécie, como lembra o grande biólogo evolutivo americano Edward Wilson em seu mais recente livro, A Conquista Social da Terra. Diz Wilson: “A homossexualidade pode ser vantajosa para os grupos humanos pelos indivíduos de talentos especiais e qualidades incomuns de personalidade e pelas profissões especializadas que cria”.

Para encarar esses assuntos com serenidade, é bom ter em mente que quem amplia as fronteiras sociais são as vanguardas comportamentais, invariavelmente formadas por minorias. Quem mantém a coesão da sociedade são as maiorias, conservadoras por definição. Por isso, as relações entre os dois grupos de pessoas, mesmo quando não há conflito aberto ou intolerância, são sempre tensas. Se a vanguarda minoritária não força a barra, as relações sociais ficam congeladas no tempo. Sem alguma resistência da maioria, as mudanças de comportamento nunca se legitimam. Mantida no plano civilizado, portanto, essa tensão é não apenas natural, mas necessária e positiva.

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