sábado, 13 de abril de 2013

Cerebral - José Miguel Wisnik

O Globo - 13/04/2013

Kim Jong-un fala literalmente, quando anuncia a iminência da guerra termonuclear?

Faz pouco tempo aconteceu em São Paulo o show de Arrigo Barnabé com Luiz Tatit. Pela primeira vez esses dois compositores da chamada vanguarda paulista fizeram parcerias — mais de uma dezena delas. É um assunto para quando sair o CD gravado ao vivo. Por ora, só quero citar alguns versos da canção final do show: “Ser humano é sempre igual/ é bem bom mas é falho/ ser humano é cerebral/ cerebral o caralho”. Essas palavras estão reboando no meu cérebro enquanto se desenrola a novela bélica da Coreia.

Escrevo na quinta sem saber o que ninguém sabe: Kim Jong-un fala literalmente, quando anuncia a iminência da guerra termonuclear? Está disposto, junto com seu comando militar, a desencadeá-la, ao mesmo tempo em que acusa o inimigo de fazê-lo? Ou fará alguma demonstração de poder balístico localizado, a título exemplar, para efeitos internos e externos? Com que raio de ação? Comemorará o centenário do avô, data cívica nacional máxima, na próxima segunda-feira, com algum fogo de artifício nuclear? Ou a manobra anunciada é toda de retórica verbal, com objetivos precisos? Em suma, seus mísseis serão, nesse momento, artefatos reais, imaginários ou simbólicos?

Todas as análises que leio esbarram na dificuldade de responder a essas perguntas. Se são mísseis simbólicos, fariam parte de uma diplomacia armada, a um tempo fria e fervente, capaz de considerar os fatores econômicos, políticos e militares envolvidos no tabuleiro asiático e de controlar os riscos levando-os ao limite, para firmar uma posição de força frente à Coreia do Sul, ao Japão e aos Estados Unidos. Se não estou enganado, a entrevista do embaixador brasileiro em Pyongyang, que li em “O Estado de S. Paulo”, há umas duas semanas, ia em boa parte nessa direção.

Se os mísseis são imaginários, não no sentido de irreais, mas como parte de um jogo de imagens que confronta a existência de alguém com a existência do outro que o ameaça de morte, estamos à beira de um jogo de tudo ou nada, em que a identidade nacional da Coreia do Norte, forjada no culto dinástico da sucessão dos ditadores, espelha-se na massa que os apoia e no aparato bélico que solda essa identidade imaginária num espelho de aço. Nesse sentido, a afirmação do potencial bélico contra o inimigo passa a ser, além de um desafio lançado ao outro, uma necessidade de reconhecimento fusional interno, de natureza hipnótica, entre o jovem líder aprendiz de feiticeiro e a massa.

Uma ou outra das leituras, simbólica ou imaginária, vai bater no real, porque a separação entre essas instâncias, quando postas à prova, é na verdade acadêmica. A retórica com fogo atômico, alimentada de imaginário, fica a um triz da explosão literal. No fundo, é isso que tem sido dito em meio à perplexidade, pela China, pela ONU, pelas ações militares norte-americanas ou por comentaristas variados.

A mim impressiona, a título de indício, um elemento aparentemente fortuito: os quepes do alto comando que cerca Kim Jong-un. São quepes altos e gorduchos, quase em forma de cogumelos, como que ciosos, no nível subliminar, do poder atômico que sustentam. Ninguém tira da minha cabeça que são cifras simbólicas e imaginárias do desejo real que os alimenta. O balanço menos visível disso tudo, no interior daqueles cérebros propriamente ditos, permanece como a incógnita e a interrogação sobre o desenrolar da novela.

Uma mulher cuja intuição eu admiro, e que não é militante feminista, me diz que todo esse alarde atômico da Coreia do Norte se deve ao fato de que uma mulher, Park Geun-hye, subiu recentemente ao poder na Coreia do Sul (também ela filha de um ex-ditador). Nessa hipótese, Kim Jong-un teria elevado o tom, inconscientemente ou não, movido por uma obscura guerra de gêneros, num campo político atomicamente armado, falocêntrico e refratário à ascensão do feminino ao poder, que tem acontecido em várias partes do mundo ocidental, chegando agora ao Oriente. O pouco que se fala da presidente sul-coreana, no contexto da crise, não deixa de ser um índice silenciado e silencioso desse fato, e da dificuldade de identificá-lo.

Volto ao cérebro: “Ser humano é cerebral /cerebral o caralho”. A palavra “cerebral” significou tradicionalmente o que é racional, equilibrado, não movido por impulsos e instintos. Essa distinção, que a canção de Arrigo e Tatit põe e dispõe com vigor espetacular, numa espécie de desabafo, também pode ser vista pelo seu avesso: as ciências têm mostrado que o cérebro não é totalmente “cerebral”. Ele manipula, esconde, premia com o prazer como se fôssemos cobaias dele, e nos leva a crer no que “ele” prefere que creiamos. Cerebral e o caralho. Como a novela atômica da península coreana.

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