sábado, 6 de abril de 2013

Ordem na casa - José Miguel Wisnik


 O Globo - 06/04/2013


PEC das domésticos mexe com hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil

Todo mundo sabe, confesse-o ou não, que o estatuto precário dos empregados domésticos na vida brasileira é uma das marcas escravistas resistentes em nosso cotidiano. E que, por isso mesmo, a Proposta de Emenda Constitucional regulando horas de trabalho, horas de descanso e pagamento de horas extras, que entrou em vigor esta semana, é um marco prático e simbólico que estabelece um patamar mínimo de civilidade no tratamento da questão. Outros direitos (fundo de garantia por tempo de serviço, multa por demissão sem justa causa, seguro-desemprego, creche e pré-escola, salário-família), que completariam a inclusão desses trabalhadores na ordem regular do trabalho formal, esperam regulamentação. Tudo isso mexe com um mercado de trabalho já em processo de mudança, dado o sintomático decréscimo da oferta de mão de obra, e mexe com hábitos muito arraigados na história da vida privada no Brasil. 

A ambivalência dessa história também é conhecida. As relações interpessoais na esfera doméstica, com suas tonalidades próximas e afetivas, são tradicionalmente muito diferentes, no Brasil, das relações impessoais vigentes entre patrões e empregados na Europa e nos Estados Unidos, onde o trabalho doméstico custa caro e é raríssimo. A informalidade brasileira, que entranha muito da nossa sociabilidade e muitas das nossas criações mais preciosas, é a mesma que dá lugar às formas mais perversas do arbítrio, do privilégio, da exploração insidiosa e da truculência. O Brasil é uma droga, no sentido positivo e negativo do termo. É desejável que o melhor dessa informalidade seja capaz de se transformar em algo mais alto, se a mais básica formalização emancipadora começar a pôr ordem na casa.

Não posso deixar de pensar, junto com isso, e por mais estranho que pareça, em Clarice Lispector. Por acaso estou relendo-a pela enésima vez, sempre com prazer e renovado espanto, por causa de um curso que inventei de dar para isso mesmo — para poder ler de novo seus livros. Ela é conhecida como uma escritora que vai aos meandros mais sutis da subjetividade, mas a gente muitas vezes esquece os caminhos que a levam a isso, e que são da percepção social mais aguda.

A empregada doméstica está no vértice supremo da obra de Clarice, que é “A paixão segundo G.H.”, publicado em 1964. Presente por ausência, mas uma ausência que define tudo. Uma mulher independente, livre de laços familiares, que vive numa cobertura em Copacabana, vai até o quarto da empregada — Janair — que trabalhou em sua casa por seis meses, quarto ao qual ela nunca foi durante esse tempo, e encontra, em vez do esperado pardieiro, um quadrilátero límpido em cuja parede caiada se estampa um desenho riscado a carvão. Nesse mural cru, de aparência quase rupestre, deixado por Janair, em que aparecem uma mulher e um homem, nus, e um cachorro, a narradora se vê através dos olhos da outra, os únicos olhos capazes de vê-la de um modo que não seja a projeção de si mesma dada pelos membros de sua classe social. Começa ali a mais vertiginosa das viagens à experiência da estranheza do outro absoluto como descoberta de si. Não será despropositado dizer que, se Guimarães Rosa fez do jagunço o transporte para o seu entendimento do enigma do Brasil e do sertão-mundo, em Clarice a passagem, no caso dela secreta, para todos os enigmas, se faz através da empregada doméstica.

Numa crônica encantadora, ou perturbadora, se quiserem, chamada “O chá”, ela imagina uma cerimônia de reencontro com todas as empregadas que teve na vida. “As que esqueci marcariam a ausência com uma cadeira vazia, assim como estão dentro de mim. As outras, sentadas, de mãos cruzadas no colo. Mudas — até o momento em que cada uma abrisse a boca e, rediviva, morta-viva, recitasse o que eu me lembro. Quase um chá de senhoras, só que nesse não se falaria de criadas”.

E “A menor mulher do mundo”? Um explorador francês descobre no mais remoto coração da África a menor tribo de pigmeus, e, entre eles, a menor mulher adulta do mundo, grávida e nua, medindo quarenta e cinco centímetros. A foto em tamanho natural é estampada numa página dupla do Jornal do Brasil, onde fica exposta a um rodízio de fantasias de classe média, entre as quais a de tê-la como empregadinha uniformizada servindo a mesa. O conto reflete, entre outras coisas, sobre o nosso desejo de posse, de deter o poder de ter alguém só para nós, sobre a ferocidade com que queremos brincar de possuir alguém.
Clarice faz ver algo que o Brasil mal começa a aprender: que ter alguém a seu serviço pessoal é um luxo a ser correspondido com todas as gratificações, limites e formas da praxe. Mais que isso: que a existência, de si e do outro, é o grande luxo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário