O GLOBO - 07/04/2013
Por
causa de uma viagem pelo verso de ‘Volver’, entrei, sozinho, numa
meditação sobre a importância do português na construção da forma samba
Escrevi:
“Dolores Duran era uma glória da língua portuguesa, sem a qual o samba
não existiria”. É no que dá escrever com pressa. Houve quem pensasse
(com razão) que eu estava dizendo que o samba não existiria sem Dolores,
quando eu queria dizer que era sem a língua portuguesa que ele não
existiria. É uma ideia que já deu mil voltas na minha cabeça: eu não
deveria tê-la resumido tão ligeiramente numa frase que resultaria dúbia.
Faz
tempo, eu estava num apart-hotel em Ipanema, cantando o tango “Volver”,
só com meu violão. É muito comum acontecer de eu imaginar como seria em
português uma frase de canção estrangeira que repito. Sobretudo se a
frase me encanta. Parei em “Que es un soplo la vida”. Estava emocionado,
e logo minha mente foi procurar como é que isso poderia ser dito em
português. Mais: cantado em português. Fiquei surpreso ao ver o tamanho
da dificuldade. Afinal era uma canção em espanhol, língua tão próxima à
nossa. Mas “Que é um sopro a vida” não funciona. Depois de algumas
tentativas, inverti a ordem das palavras e “Que a vida é um sopro” se
mostrou natural e sonora. Mas muito longe da força do original. Acima de
tudo, nada tango. A imponência, a solenidade da frase castelhana se
desfez totalmente. Num primeiro momento, pareceu-me que não restava
nenhuma beleza. Mas, afastando-me do tango e do tom aristocrático do
espanhol, comecei a achar graça na frase curta e despojada que o
português me ofertava. Espontaneamente liguei as sílabas “da”, “é” e
“um” (além de, claro, fazer de “que” e “a” também uma sílaba única —
como fazemos sempre, cantando ou conversando) e passei a repetir a frase
com quatro sílabas poéticas: “Q(ue)a-vi-d(é)um-sopro”. Em poucos
segundos eu tinha uma marcação de samba nascida da repetição da frase
(que sugeria uma pausa regular entre as repetições). Mas isso era uma
brincadeira que, em princípio, poderia ser feita com uma frase qualquer,
em qualquer língua. Tudo ficou mais forte quando isolei a frase e a
“cantei” (sem a melodia do tango e mesmo sem uma nova melodia muito
definida): era uma frase de samba.
Era uma boa frase de
samba-canção (para não dizer que estávamos assim tão longe de Dolores — e
sem esquecer de que a brevidade da vida é tema central da biografia e
do cancioneiro da carioca bochechuda). Era uma boa frase de samba de
carnaval dos anos cinquenta, de samba de Paulinho da Viola, de Cartola,
de Carlos Lyra, de Arlindo Cruz. De samba. Mas o clima que a envolve é
enormemente diferente do clima da frase portenha. Não há solenidade e,
portanto, o que se diz é algo ao mesmo tempo mais concreto e menos
pesado do que o que se depreende do verso castelhano. Parece coisa mais
banal, dita em tom mais pedestre e desimportante. No entanto, se sentido
como trecho de samba, revela outros aspectos da constatação de que não
passa de um sopro essa nossa vida. É menos bonita, mas há um realismo
particular nesse despojamento estético.
Por causa dessa viagem
pelo verso de “Volver”, entrei, sozinho, numa meditação sobre a
importância do português na construção da forma samba. É frequente o
tributo histórico que se presta à contribuição africana para o
nascimento desse gênero que, por razões tanto autênticas quanto
suspeitas, se tornou o centro da musicalidade popular brasileira. Mas
ninguém fala (que eu ouça) do papel da língua portuguesa nesse processo.
Sempre me fascinou o fato de falarmos português. Quanto mais eu crescia
e ia aprendendo a geografia do nosso hemisfério ocidental, mais
misterioso e atraente se tornava para mim que esse imenso pedaço de
América fosse habitado por lusófonos. Que fosse o único país das
Américas em que isso se deu só aumentava o fascínio. Ser um país uno
concorria para que eu formasse dentro de mim uma imagem de claro enigma.
Não
podemos conceber o samba sem a língua portuguesa. Não o teríamos
concebido sem ela. Quando João Gilberto foi cantar em Lisboa escrevi que
aquele era um grande acontecimento na história da língua portuguesa.
Mas ainda não tinha pensado o que a tentativa de tradução de um verso de
“Volver” me levou a formular. Lembro tudo isso quando ouço António
Zambujo. Outro dia ouvi uma moça que estava com Xande do Revelação
cantar “Não deixe o samba morrer” e, embora sua pronúncia soasse
totalmente brasileira, havia algo de sentimento fadista na voz. Fiquei
comovido. Logo soube que ela era portuguesa. Ao ouvi-la cantar outros
sambas/pagodes, pensei que ali se estava realizando meu sonho antigo de
haver grupos de pagode portugueses, fazendo sotaque brasileiro e sucesso
internacional. Isso, desde os primeiros pagodes comerciais. Pagode,
funk e axé lusitanos. Sonho meu.
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