sexta-feira, 3 de maio de 2013

A Primavera na sombra - Yan Boechat e Dubes Sônego

Para o Valor, de Túnis e Cairo 

Valor Econômico - 03/05/2013


 Dois anos após os levantes no mundo árabe, a economia patina, a política não avança e há quem tenha saudade da ditadura.



Meia dúzia de toalhas puídas descansam em um varal de chão em frente à barbearia. Secam sob o sol ainda tímido. Lá dentro, a luz fraca, no teto baixo, ilumina a saleta onde mal cabem duas cadeiras de barbeiro, decorada com versos do Corão emoldurados nas paredes e bancos de madeira nas laterais. Merhez Zouri usa uma máquina preta pequena e barulhenta para fazer os últimos ajustes no cabelo do cliente, cortado bem curto nas laterais e com volume em cima, como gostam os jovens tunisianos. Fala pouco, mas segue o ritual universal dos barbeiros. Espelho a 45 graus de cada lado da orelha para checar como está o corte na nuca, escovinha no pescoço para retirar os pelos, batida nos ombros para não deixar que os fios de cabelo se juntem à roupa. Tudo muito cerimonioso, tudo em silêncio.

Aos 21 anos, Zouri é um veterano das batalhas de rua que incendiaram a Tunísia e deram início ao movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe. Assim como milhares de jovens de sua idade, em janeiro de 2011 ele foi às ruas da capital, Túnis, para atirar paus, pedras e tudo o que encontrassem pela frente contra as forças de repressão, nos protestos que acabaram por derrubar o ditador Zine el Abidine Ben Ali. A desilusão com os resultados do levante, no entanto, o tornaram saudosista.

"Sabem quem é esse?", pergunta, apontando para a foto de um homem de terno preto, uma faixa roxa repleta de medalhas grandes a cruzar-lhe o peito, postado ao lado da bandeira da Tunísia, que faz as vezes de tela de fundo de seu telefone celular. "É Ben Ali. Deixo a foto dele aqui para mostrar para todo mundo que eu queria que ele voltasse", diz, olhando para a imagem clássica do ex-ditador, que por décadas decorou os prédios públicos do país.

Zine el Abidine Ben Ali, o homem que comandou a Tunísia com mão de ferro por 23 anos, partiu no dia 14 de janeiro de 2011. Acuado por maciços protestos populares, reuniu a família, juntou os pertences mais valiosos e embarcou em um jatinho particular com direção à Arábia Saudita. Com a queda do ex-general do exército que conquistara o poder por meio de um golpe de Estado, chegava ao fim um ciclo de seis décadas de ditaduras caracterizadas pela combinação de valores seculares e brutal repressão política e religiosa neste pequeno país do Norte da África, famoso por suas praias paradisíacas e por seus cenários desérticos exuberantes nas dunas do Saara.

Foi a queda de Ben Ali, muito mais do que as manifestações de rua iniciadas em 18 de dezembro de 2010, após a auto-imolação de Mohammed Bouazizi, um jovem vendedor de frutas no interior do país, que serviu como estopim para as revoltas que tomaram o mundo árabe no inverno de 2011. A queda do tirano diante de protestos populares foi o catalisador para que jovens reunissem coragem suficiente para ir às ruas do Egito, da Líbia, da Síria e de outros países para enfrentar ditadores. Mas muito mais do que um movimento ideológico, a Primavera Árabe foi uma resposta às condições econômicas e sociais que entraram em um processo de decadência ainda mais acelerada após a crise financeira de 2008. Merhez Zouri foi à rua por isso. Nos meses que antecederam a chamada Revolução de Jasmim, não conseguiu entrar em uma das universidades financiadas pelo Estado. Sem conhecer quem tivesse boas relações no governo, viu suas repetidas tentativas de conquistar um emprego no serviço público frustradas. "Eu me arrisquei na revolução porque não havia chances para mim e para praticamente ninguém aqui do meu bairro. Acreditávamos que tirando Ben Ali deixaríamos de ser pobres", diz.

Manifestante registra com tablet imagens de protesto pró-governo em Túnis; a tecnologia digital foi empregada amplamente nos primeiros meses da Primavera Árabe

Zouri é um jovem moreno, de cabelos quase lisos e de cara fechada, que facilmente passaria por brasileiro. Vive com os pais no Ibn Khal Doun, bairro operário como muitos das periferias das grandes cidades brasileiras, distante pouco mais de uma dezena de quilômetros do centro de Túnis. Por ali, é fácil encontrar grafitado o tradicional "A.C.A.B.", anagrama para "All Cops Are Bastards" (todos os policiais são "bastardos"). Nos cafés, dezenas de jovens passam o dia tomando chá, vendo futebol e fumando shisha, o narguilé.

Nos últimos dois anos, pouca coisa mudou no Ibn Khal Doun. "Só piorou. Os preços estão mais altos e os empregos, que já eram poucos, sumiram", diz. A única ocupação que Zouri encontrou foi na pequena barbearia de um conhecido, nas proximidades de casa, onde garante a principal renda da família: "Foi tudo um erro, queria mesmo que a revolução nunca tivesse acontecido". A frustração que acompanha o jovem barbeiro tunisiano é compartilhada por milhões de pessoas no Norte da África, no Oriente Médio em boa parte dos países ocidentais, que viam a chamada Primavera Árabe como um momento de transformação profunda nessa que é uma das regiões mais conturbadas do planeta. As decepções não são homogêneas. Longe disso.

Há jovens pouco politizados que esperavam uma melhora rápida e significativa nas condições econômicas. Há a elite educada desses países, que acreditava estar colocando fim a décadas de controle social e cultural por parte dos ditadores. E, por fim, havia toda a expectativa da comunidade internacional de que os países árabes entrassem em um ciclo de democratização aos moldes ocidentais.

Nada disso ocorreu. Dois anos após o que muitos analistas políticos chamaram de "a queda do muro de Berlim árabe", os países que derrubaram seus ditadores vivem momentos de crise profunda. Seja ela política, econômica ou sectária. No fim, com exceção da Síria, onde o futuro ainda é uma incógnita, Tunísia, Egito e Líbia avançam em direção ao cenário menos esperado quando das revoluções: o acirramento conservador proporcionado pelos movimentos islâmicos, os grandes vencedores políticos da Primavera Árabe.

"Os movimentos islâmicos saíram-se vencedores não exatamente por serem islâmicos. Ganharam as eleições porque, no fim das contas, eram os únicos verdadeiramente organizados politicamente", diz Stacey Gutowski, professora do Programa de Estudos sobre Oriente Médio e Mediterrâneo do King"s College, em Londres. No caos pós-revolução, nenhum grupo político era tão organizado, tão capilarizado quanto os movimentos islâmicos, que passaram boa parte das últimas cinco décadas atuando no subterrâneo. O egípcio Hosni Mubarak, o líbio Muamar Gadafi, Ben Ali e mesmo o sírio Bashar Al Assad reprimiram com rigor todos os movimentos políticos que tinham base islâmica. No Egito, a Irmandade Muçulmana, apesar de muito ativa, estava na ilegalidade há quase quatro décadas. Na Tunísia, o Ennahda, cópia independente do movimento egípcio, foi banido e boa parte de seus principais líderes foi para o exílio.


Mas, em comum, todos eles montaram uma rede de assistencialismo, tendo como base as mesquitas. Em países onde um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza, como no Egito, qualquer auxílio material ou econômico é sinônimo de poder.

"Os secularistas sempre foram mais ligados às forças sociais e culturais internacionais, sempre foram mais cosmopolitas, mas ao mesmo tempo estavam longe da população mais simples", diz James Reilly, professor de história moderna do Departamento de Estudos das Civilizações do Oriente Médio da Universidade de Toronto. "Quando chegou o momento das eleições, a histórica organização dos movimentos islâmicos permitiu que eles mobilizassem os eleitores de forma muito mais eficiente", diz.

No Egito, maior e mais importante país da região, o vencedor das eleições - democráticas e limpas, atestam observadores internacionais - foi a Irmandade Muçulmana, o principal movimento islâmico de todo o mundo árabe, nascido nos anos 1920. Desde que Mohammed Morsi se tornou o presidente do país, o Egito aprofundou ainda mais sua crise. Seja por causa da oposição, que não aceita o fato de Morsi tentar promulgar uma nova Constituição que lhe dá poderes quase ditatoriais e tem muitos pontos baseados na sharia, a lei do Corão, seja por causa de uma profunda crise econômica. Na Líbia, o cenário é ainda mais complexo. Após uma guerra civil sangrenta, que terminou com a morte brutal do ex-ditador Muamar Gadafi, o país tenta evitar que divisões históricas façam surgir um novo confronto. Como nos tempos de Gadafi, o Leste, principalmente a região de Benghazi, reclama de não receber a atenção que merece do Oeste, onde está a capital, Trípoli.

A diferença agora é que o país está armado, com divisões tribais mais acirradas e com crescente participação de grupos islâmicos extremistas. Um ataque orquestrado pela Al Qaeda matou o embaixador Chris Stevens no consulado dos Estados Unidos em Benghazi, em setembro. Na semana passada, um carro bomba explodiu na frente da embaixada francesa em Trípoli, na Líbia, deixando dois guardas feridos.
Grupos islâmicos radicais também têm tido participação importante na Síria, onde a guerra civil, que já matou mais de 70 mil pessoas, parece distante do fim. Desde que uma jihad foi decretada por clérigos sunitas, combatentes ligados a movimentos radicais de todo o mundo árabe seguiram para a Síria para combater as forças do ditador Bashar Al Assad, que pertence à corrente minoritária Alauita e é apoiado pelos xiitas do Irã. Bem armados e experientes, esses combatentes estão ganhando espaço na guerra civil e já há quem preveja que, em caso de derrota do regime, ocorra uma tentativa de instalar um Estado islâmico radical no país. É na Tunísia, no entanto, que a vitória dos movimentos islâmicos e da crescente onda de conservadorismo é mais emblemática. E não só pelo fato de ter sido ali o berço da Primavera Árabe. Nenhum país no mundo árabe tinha uma relação tão distante entre Estado e igreja quanto a Tunísia, que, ao longo das últimas seis décadas, se transformou em uma ilha de secularismo, imposto pela mão pesada do Estado.

"Antes da revolução, o uso do véu e da barba eram até malvistos. Hoje, já se escutam histórias de famílias que pressionam as filhas a usar o véu, com medo de que sejam discriminadas ou tenham dificuldade para arrumar um namorado e casar", diz o embaixador brasileiro em Túnis, Luiz Antônio Fachini Gomes, que chegou ao país em setembro de 2010, três meses antes do estouro da revolução.

Túnis ainda tenta ser uma pequena Paris. Na avenida Habib Bourguiba, que homenageia o ex-ditador que garantiu às mulheres liberdades como o direito de escolher o marido e a participação ativa em todas as áreas da vida civil, há dezenas de cafés em estilo francês, com pequenas mesas redondas e cadeiras de vime. São pontos de encontro onde os tunisianos se reúnem para conversar, tomar café e beber cerveja, uma liberdade impensável na vizinha Líbia ou na distante Arábia Saudita. Mulheres elegantes ainda caminham sobre saltos altos por entre as árvores de copas aparadas desta alameda de prédios em estilo neoclássico do século XIX. Mas, lentamente, os véus, antes proibidos, vão ganhando as ruas.


Pela força e por políticas públicas, a Tunísia coibia manifestações religiosas que ameaçassem interferir na estrutura social de um país que se vê, ainda, mais europeu que árabe. Durante os últimos governos ditatoriais do país, mulheres que usassem o véu e homens que ostentassem a barba no estilo muçulmano eram convidados a dar explicações à polícia. A liberação só era feita depois da assinatura de um documento em que se comprometiam a tirar o véu e cortar a barba. A recusa poderia significar a perda de documentos e dificuldades para encontrar emprego, estudar e usar serviços públicos básicos. O ex-jogador de futebol Anis Hamrouni, ponta-direita promissor que chegou à seleção sub-20 da Tunísia, foi vítima de situações como essa inúmeras vezes.

Desde que parou de jogar, há sete anos, por causa de uma meningite, Hamrouni se aproximou da religião e se tornou salafista, membro da corrente muçulmana que advoga uma interpretação mais radical do Corão e que pretende implantar a sharia em todo o mundo árabe. Salafistas como ele foram duramente perseguidos no governo de Ben Ali. "Fui preso inúmeras vezes, só porque mantinha a barba grande, como agora, ou porque simplesmente não queria usar roupas ocidentais", conta. "Não podíamos ser o que nosso profeta Maomé nos ensinou a ser."

Hamrouni frequenta uma das 500 - de um total de 5 mil - mesquitas tunisianas que passaram a ser dominadas por salafistas após a queda de Ben Ali, há dois anos. Ele, como todos os que seguem a mesma linha religiosa, acredita que não há espaço para democracia na Tunísia, assim como não há espaço para direitos das mulheres ou mesmo a necessidade de criar uma nova constituição. "Alá nos deu tudo, está tudo no Corão, não precisamos de novas leis, não precisamos de homens nos governando, quem nos lidera é Alá", diz ele, profundo admirador de Osama Bin Laden.

São homens como Anis Hamrouni que representam, ao menos para a população mais ocidentalizada da Tunísia, a maior ameaça a décadas de contínuas conquistas liberalizantes. "Essa não é a Tunísia que conheço. Não consigo acreditar que mulheres sem véu estão sendo xingadas nas ruas, e que pessoas que defendem a sharia têm voz na sociedade", diz o jovem Ashraf Ayadi. Ele, como uma parcela importante da população urbana da Tunísia, é um muçulmano não muito praticante. Vai à mesquita vez ou outra, mas tem um estilo de vida muito ligado ao Ocidente. "Aqui na Tunísia, não somos 100% árabes, somos uma mistura de povos. Por isso somos essa ilha de secularismo", afirma, em inglês impecável. "Mas se os islamistas continuarem a ganhar força, as coisas vão piorar", diz ele, que, aos 22 anos, trabalha como tradutor e radialista em Túnis.

Para as mulheres, as coisas já pioraram. No Egito, onde em 2010 a maior parte da população (54%) era a favor da segregação por gêneros no ambiente de trabalho e 82% apoiavam a adoção da pena de morte por apedrejamento em caso de adultério, o retrocesso em relação a conquistas femininas consolidadas no Ocidente é imenso. Não só a promessa de campanha de uma vice-presidente mulher não vingou, como a cota parlamentar de mulheres, que existia, foi removida.

Entre mulheres de classe média, muitas das quais são muçulmanas e foram às ruas ajudar a derrubar o governo em 2011, o medo agora é que uma nova constituição legalize práticas que são regra em áreas mais pobres, como o casamento a partir dos 13 anos - a Irmandade Muçulmana defende a idade de 9 anos.


No Egito, até a descriminalização da mutilação do clitóris, da qual escapa somente um terço das meninas egípcias, chegou a ser cogitada pelo atual presidente, ligado à Irmandade Muçulmana. Mas acabou descartada. O número de casos de violência sexual também aumentou significativamente, mesmo em áreas que eram frequentadas livremente por mulheres nos protestos de 2011, como a Praça Tahrir, território proibido para mulheres sozinhas, em especial à noite. A área ficou tão perigosa que, só no aniversário do início dos protestos, em 25 de janeiro, foram confirmados 18 casos, muito deles de estupros coletivos.
Na Líbia, onde um dispositivo de lei que garantia igualdade de direito às mulheres foi removido da constituição redigida após a guerra civil, a situação é semelhante, segundo informações da Anistia Internacional.

Na Tunísia, onde até a queda do antigo regime as mulheres iam à praia em biquínis, Amina Tyler, uma jovem de 19 anos, foi condenada à morte por apedrejamento por um clérigo radical depois de postar na internet uma foto em que aparecia fazendo topless, com a frase "F... a sua moral" pintada no corpo, em árabe. O protesto contra a crescente repressão às mulheres no país repercutiu mundialmente e terminou com o rompimento de Amina com a família religiosa. Ela está escondida e quer fugir para a França. Teme ser violentada por policiais ou morta por salafistas.

Os salafistas fazem parte do grupo mais extremo dos movimentos islâmicos. Ao contrário da Irmandade Muçulmana ou do Ennahda, na Tunísia, advogam que todo o mundo árabe precisa voltar a ser um califado. De origem sunita e surgido em sua versão moderna no século XVIII, o salafismo passou a ganhar mais força nos anos 1960 e veio a desaguar em movimentos radicais como a Al Qaeda.

Apesar de os partidos moderados islâmicos, como a Irmandade Muçulmana, no Egito, ou o Ennahda, na Tunísia, não compartilharem da visão desses movimentos, nenhum deles teve força suficiente para impedir o avanço dos salafistas no período pós-revolução. Para esses grupos não há espaço para negociação e o uso da força tem sido sistemático em defesa de suas ideias. "Há um crescente descrédito nas instituições que deveriam proteger os direitos humanos", diz o vice-diretor da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte da África, Hassiba Hadj Sahraoui.

O auge dessa política de medo ocorreu em 6 de fevereiro na Tunísia, quando o líder da oposição Chokri Belaid foi assassinado com quatro tiros. Belaid era crítico feroz dos salafistas e acusava o Ennahda de não tomar nenhuma ação para controlar os mais radicais. A morte de Belaid pode muito bem ter sepultado o sonho de que um novo mundo de democracia e liberdade floresceria nos países árabes. A pergunta que ficou no ar foi: se não deu certo na Tunísia, o mais secular dos países da região, onde mais poderá dar?


"As próximas eleições vão definir se os islamitas vão consolidar o poder que conquistaram. Agora, mais do que antes, a questão econômica será crucial para definir quem sairá vitorioso", diz Amel Saffar, professor do Instituto de Altos Estudos Econômicos de Cartago e integrante da Associação Tunisiana para a Democracia, um dos grupos responsáveis pela observação das disputas eleitorais.

As próximas eleições parlamentares no Egito e na Tunísia estão marcadas para outubro, apesar de não haver certeza se elas de fato ocorrerão. No Egito, estavam programadas para o mês passado, mas os protestos violentos do início do ano no Cairo e em cidades próximas ao canal de Suez, somados às promessas da oposição de boicote, levaram Morsi a adiá-las para outubro. Agora o presidente dá sinais de que haverá novo adiamento. A razão, segundo ele, é que precisa de mais tempo para negociar um acordo de auxílio financeiro com o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Muito mais que a Tunísia ou a Líbia, que passa por um momento de reconstrução pós-guerra civil, é o Egito o país mais pressionado pela decadência econômica que tomou conta dos países da região. Desde a queda de Hosni Mubarak, há dois anos, o processo de deterioração do cenário econômico se acelerou rapidamente. O PIB, que crescera 5,14% em 2010, decepcionou, com 1,7% em 2011; no ano passado, teve apenas uma leve recuperação, fechando em 2,21%.

Mas o problema mais grave está no balanço de pagamentos. Desde janeiro de 2011, as reservas em moeda forte caíram de US$ 36 bilhões para cerca de US$ 13 bilhões. O problema é grave para um país que mantém uma política de subsídios agressiva em produtos que precisa importar, como o trigo, do qual é o maior importador mundial, e o petróleo. Hoje o pão comercializado nas ruas do Cairo, por exemplo, custa o equivalente a menos de US$ 0,10, enquanto o litro da gasolina é vendido nas bombas a US$ 0,20. O gás de cozinha chega ao consumidor egípcio a meros 7% do valor internacional de mercado. Sem ajuda externa, os US$ 13 bilhões em caixa são suficientes para apenas três meses de importações.

A inflação disparou nos últimos meses. A taxa anual, que em dezembro estava em 5%, pulou para 8% em fevereiro. Ao mesmo tempo, a libra egípcia perdeu mais de 10% de seu valor apenas neste ano, tornando a missão do governo de abastecer o país com commodities importadas ainda mais difícil. A taxa de desemprego oficial saiu de 9% em 2010 para 12,3% no ano passado. O FMI, no entanto, projeta que os desempregados serão 13,5% da população economicamente ativa ao fim deste ano e 14,2% em 2014.
O Egito não quer aceitar o acordo com o Fundo para receber um pacote de auxílio de US$ 4,8 bilhões porque sabe que terá de adotar medidas de austeridade duras, como o corte de subsídios e o aumento de impostos, como exige o FMI. Os reflexos de um acirramento econômico em um país já dividido e instável são imprevisíveis.


Para não quebrar, o Egito anda de pires na mão. O Catar já deu US$ 5 bilhões e prometeu mais US$ 3 bilhões. A Turquia se comprometeu a transferir em dois meses US$ 1 bilhão, dos US$ 2 bilhões que prometeu no ano passado. Mesmo a Líbia, que se transformou em pouco mais que um punhado de cidades autônomas ricas em petróleo, anunciou no mês passado ajuda de US$ 2 bilhões.

A Tunísia também sofre com uma economia que caminha a passos lentos. Mas foi mais rápida nas negociações com o Fundo e garantiu, na semana passada, crédito de US$ 1,75 bilhão em caso de necessidade. O valor ficará disponível por 24 meses, segundo anunciou no dia 19 a diretora-gerente do Fundo, Christine Lagarde. Na lista de exigências do Fundo estão velhas recomendações conhecidas dos brasileiros, como políticas para a contenção da inflação, ajustes de despesas públicas, garantias à estabilidade do setor bancário e maior flexibilidade do câmbio, para que o país possa ganhar competitividade, melhorar suas contas externas e reservas internacionais.

Na praça Tahrir, na região central do Cairo, talvez o maior símbolo da Primavera Árabe, ainda estão as tendas montadas pelos manifestantes para marcar território e resistir às investidas das forças de segurança do governo. Um museu foi improvisado com paus e lonas plásticas para homenagear os mártires dos conflitos. Lá estão expostas charges políticas, pequenos textos e fotos de jovens desfigurados pela violência, de batalhas, de momentos de heroísmo e alegria. Há carcaças de carros incendiados, fezes nas entradas do metrô e muita poeira cobrindo a rua. Suja, decadente e insegura, ela, de certa forma, se transformou em um símbolo também do período atual.

"Os egípcios que fizeram a revolução estão cheios de perguntas sem resposta", diz Mohamad Shinnewy, jovem documentarista egípcio que vive na Tahrir desde o início dos protestos. Magro, a barba por fazer, os cabelos sem corte presos em um rabo de cavalo, Shinnewy é o retrato dos manifestantes de hoje. Está ali sem saber muito o que fazer, e diz: "Continuamos aqui para defender a revolução".

A rotina modorrenta e desesperançada é quebrada pelos constantes choques com a polícia. Eles ocorrem, em geral, nas proximidades da embaixada americana, a cerca de 500 metros da Tahrir. Sob as luzes fortes da avenida que margeia o Nilo, os manifestantes avançam e recuam em ondas, atirando paus, pedras e coquetéis molotov. Os mais destemidos à frente, alguns deles crianças, de peito aberto, se arriscando a receber tiros com munição para matar passarinhos. Do outro lado, a polícia responde também com pedras e bombas de gás lacrimogêneo. Depois de dois anos de enfrentamentos, um ar de normalidade toma conta do cenário.

O caos controlado atrai uma leva de vendedores ambulantes que se acostumaram a ganhar a vida em meio a conflitos como esse, que neste ano já fizeram mais de 70 mortos e cerca de 1.400 feridos. Misturados aos manifestantes, no meio da avenida, eles comercializam pães, lenços de pano - bastante úteis para respirar no ar saturado de gás lacrimogêneo -, água, sucos e chás. Alguns, como o dono de um grande carrinho de metal, já têm até slogans para desbancar a concorrência: "Aqueça-se com um chá para derrubar Morsi".

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