sábado, 18 de maio de 2013

Alê - José Miguel Wisnik


 O Globo - 18/05/2013

Alê conhece profundamente os procedimentos estruturadores da música de Bach à de Stockhausen

Como sempre acontece, entrego a coluna na quinta-feira. É a data limite do jornal e a minha também, porque jamais consigo escrever com antecedência. Hoje faço um show no Espaço Tom Jobim, e como já contei outras vezes, tenho que fazer a proeza de não me consumir aqui, e evitar a minha tendência a demorar demais na escrita. Para começar, nada de dissertações.

Cheguei na terça-feira para uma aula-show com Arthur Nestrovski no Real Gabinete Português de Leitura, que comemorava 176 anos de existência Eram canções comentadas indo de Martin Codax (canções galego-portuguesas do século XIII) a Fernando Pessoa, passando por Gregório de Matos, Drummond e Vinicius. Tivemos problemas de som, compensados pela reverberação e a maravilha do lugar, essa espantosa biblioteca a olhos nus plantada no centro do Rio de Janeiro como uma epifania surreal de Portugal. Nunca é demais lembrar que Machado de Assis, que não frequentou escola senão a primária, formou boa parte do seu repertório literário universal no Gabinete Português, antes da existência do prédio atual, que data do fim do século XIX.

Na quarta-feira fiquei trabalhando o dia inteiro com Jussara Silveira e Rita Ribeiro num futuro CD delas, que será um disco centrado o mais possível na autossuficiência das vozes. Nosso produtor é Alê Siqueira, eu faço uma espécie de direção artística que é mais propriamente uma parceria de ideias com ele e com elas, e ficávamos trocando canções que nos lembravam canções, feitas de outras canções desembocando em ainda outras. O melhor dos mundos.

Para que se entenda, eu preciso explicar um pouco Alê Siqueira, esse paulistano de Santana que resolveu há anos morar na Bahia para entender os ritmos, a última coisa que faltava na sua formação de quem cresceu ouvindo rap, dominou a música pop, mergulhou na linguagem da música erudita em toda a sua extensão histórica e trabalhou cinco anos com Flô Menezes no estúdio Panaroma de música eletroacústica. Alê conhece profundamente os procedimentos estruturadores da música de Bach à de Stockhausen.
Temperou tudo isso com a sua convivência com a canção popular, da chamada vanguarda paulista (ele é uma espécie de vanguarda paulista mutante, de última geração) ao panteão da canção pop (coproduziu o disco dos Tribalistas e acaba de produzir boa parte do próximo de Ana Carolina, entre muitos outros).
Dizendo assim, e como não estamos acostumados com tal amplitude e solidez de repertórios, pode ficar parecendo que Alê participa do clima de vale-tudo estético em que se mistura aleatoriamente tudo com tudo. Não haveria engano maior. Quando escrevi o livro “O som e o sentido”, em 1989, fiz no final a única profecia do livro, que era em parte uma piada, um jogo de palavras mas também uma previsão a se colocar no plano das ideias: a da formação de um novo tipo de músico a ocupar o lugar transformador que se deu historicamente com os filhos de Bach, que desenvolveram a forma-sonata e a forma-concerto, em contraponto com os filhos de Stockhausen, que eu ouvia dizer que faziam jazz e música pop. Falei então no surgimento de “filhos de Stockhausen”, não os literais, mas o de músicos capazes de transitar sem barreiras, e com completo conhecimento de causa, por todas as formas possíveis da música, como se tivessem decodificado o monolito dos tons e dos pulsos.

Essa figura virtual tomou corpo no mundo, ela pode ser reconhecida por exemplo em Björk, mas eu não imaginava uma encarnação completa tão perto de mim, como a de Alê Siqueira. Estão aí Rita Ribeiro e Jussara Silveira que não me deixam mentir. Alê é desses músicos capazes de radiografar a música que escuta, de distinguir imediatamente os pontos nodais que a diferenciam e que permitem a sua compatibilidade com outras. No campo melódico-harmônico e no campo rítmico (cujas claves africanas e cubanas ele domina, depois de ter trabalhado com as percussões baianas, o candomblé e com Omara Portuondo em Cuba). Um daró africano, uma peça de Béla Bartók sobre danças búlgaras, um samba de roda e uma fanfarra romena podem tocar juntos quando ele os acessa com facilidade espantosa no seu arquivo digital e as sincroniza imediatamente, não porque — repito — esteja fazendo uma maionese musical mas porque conhece os caminhos das pedras e os atalhos que compatibilizam essas tradições nas suas afinidades e nas suas diferenças.

Afinal as músicas, com seu travos próprios e suas cores, com seus sabores e dicções locais inconfundíveis, não deixam de ser uma negociação interna com os números e as frequências, no tempo e no espaço, um castelo de cartas que se monta passando do 2 ao 3, daí ao 5, ao 7, ao 12 e ao infinito.


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