domingo, 19 de maio de 2013

Direitos por força do martelo - José Reinaldo de Lima Lopes

O Estado de S.Paulo - 19/05/2013 


Com um Parlamento omisso, Supremo e CNJ tomam a frente na aprovação
do casamento gay – e suas decisões, se forem mantidas, terão peso de lei


Há décadas os homossexuais do Brasil lutam por reconhecimento e pela eliminação de um velado, difuso e constante clima de desrespeito e ameaças a seus direitos básicos. Esse preconceito sustentava-se em leis e interpretações de leis que tomavam por natural o tratamento diferenciado e menos favorecido a essas pessoas. Contra elas, houve projetos de legislação para estender direitos iguais aos núcleos familiares formados por pessoas de mesmo sexo. Tais propostas encontraram no Congresso Nacional ouvidos moucos. Não chegaram a ser discutidas e serviram mais de uma vez como moeda de troca em acordos políticos. Como o Judiciário também é parte do poder soberano e é o lugar constitucionalmente privilegiado da defesa dos direitos fundamentais de grupos minoritários, foi por ali que avançou a luta pela igualdade,como de resto já se dera em outras partes do mundo e em outros momentos da história do Brasil. Lembremos que foi nos tribunais que as famílias constituídas por heterossexuais desquitados, antes de haver o divórcio no Brasil, foram pouco a pouco encontrando reconhecimentoe proteção.

Tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça, para não falar de outras instâncias,vinham eliminando o tratamento discriminatório direto e indireto ainda abrigado na legislação brasileira. Por meio de interpretação, vinham alterando nossa maneira de compreender a família no âmbito do direito e o faziam assumindo que não equiparar héteros e homos equivalia a distribuir diferentemente as liberdades civis por causa de atividades absolutamente privadas, que não causam dano a ninguém e não repercutem no patrimônio ou na liberdade alheios.

Porque,afinal de contas,não entender as uniões homossexuais como uniões familiares? Os que têm memória lembram-sebem que no auge da epidemia de aids em meados dos anos 80, foram os homossexuais, travestis e transgêneros que em primeiro lugar organizaram sistemas de apoio mútuo e tratamento para os afetados. Em não poucos casos as famílias heterossexuais das quais procediam os doentes os abandonavam e rejeitavam, assim como essas famílias muitas vezes os haviam humilhado e desprezado pelo caráter de seus afetos. Por que, então, o Estado mesmo não assumiria o dever que lhe compete de impedir essas violências físicas e morais contra uma parte de seus cidadãos? Fechadas as portas do Parlamento, por que não buscar na Justiça o que lhes era devido por justiça?

O Conselho Nacional de Justiça resolveu agora pôr fim a certo estado de incerteza. Uma vez reconhecida a equivalência jurídica da união estável de parceiros do mesmo sexo à união estável de parceiros de sexo
diferente, poderia ainda assim haver resistências localizadas ao processamento de pedidos junto aos sistemas de registro. Já em janeiro de 2013, a Instrução Normativa nº14 indicara o procedimento que os cartórios deveriam adotar, especialmente porque em diversos estados os respectivos Tribunais de Justiça haviam tentado ordenar a matéria por suas corregedorias. A Resolução nº 175, de 14 demaio de 2013, tomou a si transformar a negativa de registro ou celebração de casamento de pessoas do mesmo sexo em ato indisciplinar dos encarregados dos registros públicos no Brasil.

Haverá os que criticarão a decisão dizendo tratar- se de verdadeira emenda ao Código Civil. Como toda decisão, esta também poderá ser impugnada judicialmentee, se for o caso,revista pelo Supremo, porque, dirão,uma coisa é união estável e outra casamento. Entretanto, como a união estável pode ser transformada em casamento, o que o CNJ fez foi dar um passo adiante: uniões estáveis são uma forma de estabelecer família e esta forma pode converter-se em casamento, logo a resolução antecipou-se a objeções e instruiu os cartórios a aceitarem desde já o casamento igualitário, visto que a decisão do STF sobre o assunto na ADPF132 foi vinculante.

Se é constitucionalmente obrigatório aceitar uniões entre pessoas do mesmo sexo, e se elas podem converter-se em casamento, por quenão deveria ser permitido o casamento diretamente? Essa é a racionalidade da Resolução. Enquanto vigorar, a resolução equivale à plena equiparação dos casos, o que gera automaticamente todos os direitos e deveres inerentes a qualquer casamento, inclusive quanto a filiação e adoção.Talvez haja mais batalhas pela frente. Nessa semana, tivemos a prova de que o Parlamento, numa sociedade democrática e liberal, não deveria abdicar de sua função de discutir os temas, tomar decisões e pagar o preço que for necessário.

JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES É PROFESSOR DA
FACULDADE DE DIREITO DA USP E DA DIREITO GV

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