terça-feira, 28 de maio de 2013

Personagens comuns em ricas histórias - Marcelo Lyra

 Valor Econômico - 28/05/2013

Este é o segundo livro de contos do moçambicano Mia Couto, um dos mais importantes autores africanos da atualidade, conhecido principalmente pelo belíssimo romance "Terra Sonâmbula". Nas histórias curtas os personagens perdem um pouco em densidade, quando comparados aos do romance, mais por falta de tempo para um aprofundamento. Em compensação, sua imaginação e habilidade na ambientação seguem intactos. São 11 histórias, a maioria com protagonistas mulheres, em narrativas que oscilam ora entre o realismo mágico das lendas africanas, ora em meio à dura repressão das autoridades do Terceiro Mundo, sempre retratadas de modo patético.

Uma das mais belas e interessantes é sem dúvida a que abre o livro, "A Rosa Caramela", uma jovem corcunda, de rosto belíssimo, que enlouqueceu depois de ser abandonada no altar, desenvolvendo o hábito de conversar com estátuas. O mistério que essa mulher inspira nos moradores do pequeno vilarejo é proporcional à comoção causada por sua arbitrária prisão, simplesmente porque conversava demais com a estátua de um antigo líder deposto e proscrito pelo novo regime, o que foi considerado pelas autoridades como subversivo. A surpresa com a revelação do desconhecido noivo e o desfecho da trama são dessas coisas que fazem a literatura valer a pena.


"Rosalinda, a Nenhuma" mostra uma mulher que sofre anos com as traições e espancamentos do marido, um alcoólatra que vive às custas dela. Só quando ele morre ela se sente capaz de apaixonar-se por ele, enciumando-se de outra que também vem chorar no túmulo do marido. Novamente, aqui, por trás da trama singela é possível notar o registro de um cotidiano machista, no qual as mulheres são submetidas aos desmandos do marido e a libertação só vem com a morte dele.
Entre os contos masculinos, destaca-se o do Tio Geguê, que mostra o terror que as milícias impõem nos povoados por intermédio de uma história romântica de um rapaz órfão, criado pelo tio, que de repente começa a ter sonhos com a mãe que nunca conheceu. Há também o barbeiro Beruberu, pobre e querido em seu povoado, que procura valorizar sua barbearia garantindo que cortou o cabelo do ator americano Sidney Poitier. Seus problemas começam quando as autoridades acham que esse culto aos estrangeiros pode ser subversivo.


Como em quase todo livro de contos, o resultado é desigual, já que um ou outro relato não atinge o bom nível da maioria. Mas a poesia delicada e romântica que emana dos personagens está presente em todos, e o que mais impressiona é a habilidade de Couto na construção de frases. Elas são reduzidas ao mínimo e compreendidas muitas vezes pela sonoridade, à maneira de Guimarães Rosa. Couto parece esculpir cada palavra de modo que se encaixem nas frases como pedras de uma pirâmide. Fosse só esse seu mérito, já estaríamos diante de um escritor de destaque. Mas seus personagens são tão ricos em sua simplicidade cotidiana, tão humanos em seu sofrimento obstinado, que, para além do estilo, se tornam marcantes e acabam permanecendo por muito tempo na memória.
O livro vem com um oportuno glossário ao final, uma vez que Couto usa muitas expressões comuns ao vocabulário moçambicano, e recomenda-se uma leitura prévia, para familiarizar-se com elas e assim não quebrar o ritmo das deliciosas histórias.

"Cada Homem É uma Raça"

Mia Couto Companhia das Letras 198 págs, R$ 35,00 

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