O Globo - 04/05/2013
Na roda da fortuna do futebol, sobe o Bayern de Munique e caem o Barcelona e a Seleção Brasileira
O Bayern de Munique impôs ao Barcelona uma derrota surpreendente e rotunda,
somando 7 x 0 nos dois jogos pelas semifinais da Liga dos Campeões da Europa.
Derrota rotunda quer dizer categórica, indiscutível, insofismável. A palavra
rotunda está na origem da palavra redonda, e a derrota foi também líquida,
esférica e na bola. Associando livremente, lembro-me de uma visita ao Museu
Pérgamo, em Berlim, durante a Copa de 2006, quando era exibida uma exposição
sobre as figurações da esfera na história humana. O único jogador citado era
Garrincha: num filme em loop na entrada do museu, ele bailava um
drible infinito, convidando o seu marcador para dançar, sem tocar a bola, como
se o tempo, parado, girasse em círculos aos pés de uma criança (“Como se o ritmo
do nada/ Fosse, sim, todos os ritmos por dentro”).
Há dois anos o Barcelona dava demonstrações do mais completo domínio de jogo,
de uma posse de bola sem precedentes, de uma superioridade avassaladora sobre os
adversários, como se tivesse descoberto a fórmula do futebol que os outros
desconhecem, como se tivesse decodificado a própria quadratura do círculo que
está na base secreta do futebol. Contando ainda com a eficácia absurda de Messi,
despida de qualquer estrelismo (em contraste com a petulância irreprimível de
seu rival máximo, Cristiano Ronaldo), o efeito estava próximo de uma condição
supra-humana.
Mas a Roda da Fortuna, que aparecia na exposição berlinense como uma alegoria
medieval, gira acelerada num futebol turbinado pela preparação atlética, exigido
pela ocupação intensiva de todos os espaços, cobrado em toda linha por uma
concorrência publicitária sem trégua, sugado rapidamente pelo tempo. O
Barcelona, que não usa publicidade na camisa, e cujo futebol totalizante, que
alguns consideraram totalitário, parecia pairar soberano acima das periclitantes
economias europeias, sucumbe, junto com o Real Madri, à envolvente ascensão do
futebol alemão, que parece, pelo menos por um momento, equalizar o poder
futebolístico com o poder econômico nacional. Como já tem sido comentado, o
futebol desses times alemães, o Bayern e o Borussia Dortmund, combina qualidades
do Barcelona com mais volúpia, intensidade e verticalidade atacante. O giro de
bola paciente, meticuloso, calculado e às vezes tedioso do time catalão, é
contrastado por uma explosão sôfrega de contra-ataque. A inteligência tática se
combina com técnica, dribles e vitalidade interna.
Não acredito que o ciclo do Barcelona esteja terminado. Acredito, isso sim,
que esteja se dando uma espécie de revolução dentro da revolução de um futebol
europeu jogado compactamente, e no qual, por uma espécie de aceleração, o
feitiço reverte contra o próprio feiticeiro, aplicado por um outro feiticeiro da
vez. Longe desse futebol estranhamente vivo, pela intensidade com que se supera,
o brasileiro não tem sabido como sair da condição de espectro de si mesmo.
O Brasil jogou com o Chile num Mineirão renovado, mas num gramado castigado,
segundo li, por shows realizados nos dias anteriores. A bola era essa usada na
Copa do Brasil, que parece uma pipoca doce pela sua mistura informe de preto,
amarelo e vermelho, distribuídos entre figuras meio geométricas e pinceladas
indistintas que não dão leitura e não oferecem uma boa diferenciação de figura e
fundo. Os detalhes, altamente sintomáticos, podem parecer desimportantes, mas só
para uma cultura futebolística degradada que esqueceu o que é o campo e a bola.
Não ouvi nenhum comentário a respeito disso na transmissão da Globo, entre os
elogios irrestritos ao estádio. A esfera parecia pipocar continuamente no
terreno mais irregular do que deveria ser, e queimava mais nos pés brasileiros
do que nos chilenos.
Luiz Felipe Scolari substituiu o meio-campista Jadson pelo atacante Osvaldo
caindo pela direita, que era imediatamente anulado por três adversários quando
pegava na bola. O time, que não estava mal na partida naquele momento, perdeu o
meio-campo, abandonado a um Ronaldo Gaúcho solitário. Esse tipo de situação
(jogadores isolados pela ponta, na ilusão de que somam mais um elemento ao
ataque destituído de alimentação) não existe mais no futebol contemporâneo, nem
nas seleções medianas. A torcida começa com o “sou brasileiro com muito orgulho”
e não espera muito para começar as vaias. Neymar desenha-se como o possível bode
expiatório dessas velhas síndromes, se a Roda da Fortuna não girar a favor de um
renascimento, enquanto João Havelange foge pela porta dos fundos.
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