Zero Hora - 01/06/2013
Nova edição do Dicionário de Saúde Mental da Associação Americana de
Psiquiatria abre discussão sobre os critérios para separar doença e
sanidade
A utilidade de um dicionário é normatizar para esclarecer dúvidas,
mas por vezes uma publicação do gênero provoca questionamentos mais
sérios e mais preocupados do que respostas. Ainda mais se o dicionário
em questão lida com um tema tão delicado e espinhoso quanto o próprio
limite entre sanidade e distúrbio.
Com a divulgação, em maio, da quinta edição do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Estatístico e Diagnóstico
de Distúrbios Mentais, em tradução livre), ou DSM-5, como vem sendo
chamado pelos especialistas, abriu uma nova e acalorada discussão sobre o
quanto o objetivo, necessário, de graduar de modo científico os
sintomas de doenças mentais não está criando a sociedade da
hiperdiagnose, em que a normalidade é conceito cada vez mais rarefeito.
– Classificações como essa são importantes, são válidas para
unificar a linguagem e melhorar a comunicação entre profissionais, mas
um dos problemas desse tipo de classificação é a criação de diagnósticos
excessivos, que não levam em conta a subjetividade – comenta o
psiquiatra e psicanalista Celso Gutfreind.
A polêmica teve início com a divulgação das principais alterações na
quinta edição do DSM. A publicação é elaborada pela American
Psychiatric Association (APA, Associação Americana de Pisquiatria), e é
um dos mais conhecidos e utilizados manuais diagnósticos do mundo. É um
dicionário no qual se encontram os critérios para que determinado
comportamento seja classificado como transtorno ou distúrbio mental e,
assim, tratado de acordo com o entendimento do médico, o que pode
(embora não necessariamente deva) incluir a administração de
medicamentos.
– Ainda há uma grande discussão a respeito das mudanças desta nova
edição aqui nos Estados Unidos. Alguns especialistas manifestaram
discordância dessa abordagem mais biológica de diagnóstico – comenta o
psiquiatra Rodrigo Machado-Vieira, residente em Maryland, nos Estados
Unidos, e diretor do Centro de Pesquisa Translacional em Transtornos de
Humor do Instituto Nacional de Saúde Mental, nos EUA.
Um dos mais acirrados críticos da quinta edição do manual,
ironicamente, é o homem que ajudou a elaborar a edição anterior do
documento, o psiquiatra Allen Frances, professor emérito da Universidade
Duke. Em posts que vem publicando com regularidade em seu blog no
portal Huffington Post (www.huffingtonpost.com/allen-frances), ele vem
apontando o que considera erros conceituais e técnicos nos critérios
adotados pelo dicionário. De acordo com ele, o novo manual é composto de
“uma mistura irresponsável de novos diagnósticos que podem estigmatizar
e submeter pessoas normais a tratamentos desnecessários”:
“A publicação do DSM-5 é um momento triste para a psiquiatria e
perigoso para os pacientes. Minha recomendação para os clínicos é
simples. Não usem o DSM-5”, escreveu Frances.
– Minha opinião sobre o DSM parafraseia a de Winston Churchill, que
dizia que a democracia era o pior sistema de governo, com exceção de
todos os outros. O DSM está longe de ser perfeito, mas é a melhor
ferramenta que se tem em diagnósticos de psiquiatria – pondera
Machado-Vieira.
A discussão a respeito de um manual de saúde mental publicado por
uma associação de profissionais dos Estados Unidos não é, como se
poderia pensar à primeira vista, distante da realidade brasileira – até
porque o dicionário tem uma influência que se alastra para além das
fronteiras americanas e que pode ser verificada mesmo no Brasil (leia o
texto na página ao lado).
As críticas ao DSM também não são coisa recente ou restrita
especificamente a esta quinta edição. Já a versão anterior havia sido
alvo de polêmica por apresentar, com o rótulo de distúrbios,
comportamentos que poderiam, com gradações, ser incluídos na estranheza
nossa de cada um.
Não é coincidência que, desde os anos 1980, o número de diagnósticos
de distúrbios mentais tenha se ampliado de tal forma que, de acordo com
um estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde Mental no início
dos anos 2000, 46% dos adultos pesquisados se encaixavam em alguma das
categorias do DSM – e isso na quarta edição, antes das atuais
modificações.
A nova encarnação do manual amplia a classificação de determinados
distúrbios e modifica outros. Em um primeiro momento, chamaram a atenção
as definições de distúrbios aplicados a manifestações extremas de birra
infantil e apego a quinquilharias mesmo ciente de seu mínimo ou nenhum
valor.
A própria idade de controle para o aparecimento de sintomas de
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade em crianças, pela nova
publicação, agora é de 12 anos. Em uma das mais criticadas medidas, o
luto pela perda de um ente querido, se ultrapassar duas semanas, pode
ser considerado um indício de depressão – embora o texto seja mais
aberto neste caso, a medicação estaria indicada. Mesmo o luto, expressão
tão individual de sentimentos, estaria sujeita a um controle de
“normalidade”?
– Quando eu estudava Medicina, o tempo que se acreditava apropriado
para um luto durava de três a seis meses. No tempo do capitalismo
avançado, parece que o tempo é um bem cada vez mais restrito para as
pessoas – comenta o psiquiatra e psicanalista Sergio Eduardo Nick,
vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro.
Nessa imbricação entre arte, criatividade e normalidade, reside
também outro grande paradoxo da catalogação minuciosa de distúrbios em
um mundo capitalista que exige, ao mesmo tempo, originalidade,
criatividade e eficiência maquinal.
– Precisamos romper a identidade que há na sociedade contemporânea
entre normalidade, eficácia e velocidade. Estamos lidando hoje, em
vários níveis, com conceitos de maquinização do ser humano. O sujeito
precisa estar pronto o mais rápido possível para produzir, para voltar
ao trabalho. É uma espécie de psiquismo herdeiro da Revolução Industrial
– comenta a psicanalista Diana Corso.
Como pano de fundo da discussão está também uma questão técnica
debatida pelos profissionais: a suposta ação rápida de medicamentos
versus terapias mais longas e com menos recursos químicos.
– No fundo, há uma guerra ideológica entre os profissionais da área
sobre como ver o ser humano. O DSM é um manual orientado pela ideologia
comportamental, que não dá tanta importância a fatores menos fáceis de
aferir, como o ambiente, as emoções, os sentimentos do paciente –
salienta Nick.
O fenômeno da chamada “terapia química” ganhou amplo espaço nos
consultórios a partir da segunda metade dos anos 1980, quando novas e
potentes drogas se mostraram eficientes para ajustar desequilíbrios
químicos do organismo – o Prozac, em especial, foi a primeira droga do
gênero a ganhar espaço não apenas nas salas de consultório, mas no
imaginário público e mesmo na cultura pop.
No âmbito da cultura, a ampla aplicação da terapia medicamentosa
provocou reflexões a respeito da diagnose excessiva ou da sedação
coletiva. Em seu ensaio Receituário da Dor para Uso Pós-Moderno, o
português João Barrento arrisca uma definição da sociedade
contemporânea, para quem a dor e o sofrimento haviam sido transformadas
em “fantasmas”, com efeitos nem sempre positivos para o conjunto da
humanidade:
“No mundo das paixões que era o da tragédia antiga, a dor – tal como
a beleza e a alegria, o canto e o Êxtase –, é matéria-prima da vida
ritualizada. Depois, a vida foi-se dessacralizando, tornou-se mais
confortável, mais baça... e mais longa. Ficamos mais sós. Sós, não
porque nos faltassem os outros, muito pelo contrário. Ficamos sós porque
fomos amputados de alguma coisa que era parte de nós. O homem
civilizado olha para o mundo, o mundo está em estado de dor quase
permanente, e em vez de responder com um lamento (...), fica em
silêncio.”
Com atuação tanto como terapeuta quanto como artista, Gutfreind
publicou, em seu mais recente livro, Em Defesa de Certa Desordem, um
poema no qual critica a prevalência da farmacologia sobre a arte na
sociedade contemporânea: “Afastem a Deusa química, / as mulheres têm a
arte, a ciência não sustenta / a falta, a falta preenche, / música podem
deixar / – Deusa houvesse, era ela –, / tirem certezas, substâncias /
que a presença da palavra / com melodia cantada / pelo outro bastará”.
– No fundo, o ser humano tem medo do desconhecido e da dor. A dor é o
que nos desestrutura, mas também é uma experiência que faz parte do que
nos define, a nossa própria subjetividade. Ao acreditar que a resposta
tem de ser sempre rápida, estamos perdendo a dimensão do tempo, de
viver, de criar, de perder tempo – diz Gutfreind.
Associada à questão da nomenclatura cada vez mais ampla de
comportamentos desviantes, há também a questão do próprio conceito de
normalidade, que acaba cada vez mais restrito no momento em que
exotismos e excentricidades se assemelham a gradações de distúrbios
mentais.
– Todos temos sintomas de compulsão ou obsessão, coisas que nos
tornam quem somos. É preciso cuidar para que isso não seja tomado como
doença, o que seria desumanizador – diz Nick.
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