domingo, 20 de outubro de 2013

Nos passos dos ‘lekes’, a transformação do Rio - RENÉE CASTELO BRANCO

O Globo 20/10/2013

Eles inventaram uma dança, criaram
uma nova noção de beleza e de amizade,
borraram as fronteiras entre o masculino
e o feminino. Estão por toda parte,
conectados através do Youtube e do Facebook;
não usam drogas e respeitam os pais. São os
“mulekes” do Passinho.

Moram em favelas e bairros populares do Rio
de Janeiro; formam uma rede que se estende
pelos municípios vizinhos. Criaram um modelo
alternativo para os jovens dos morros cariocas,
ainda atraídos pelo poder, glamour e dinheiro
aparentemente fácil dos traficantes.

Esguios e atléticos, estes filhos do funk riscam
o chão com passos que lembram os do samba,
frevo, charme, break, street dance, hip hop ou
até yoga e dribles de futebol. Gostam de imitar
gay. Uma homenagem ao estilo do precursor
morto a pancadas de madrugada na rua no Rio;
um episódio até hoje pouco esclarecido. Gambá
trabalhava como gesseiro. Era talentosíssimo e
abusava de uma estética invejada pelos dançarinos.
A partir daí o passinho cresceu. Como se
todo movimento precisasse de um mártir.

Poucas meninas “mandam” passinho. É um
mundo masculino. Elas torcem por eles, ajudam
a enfeitá-los e até pagam para que estejam
bem arrumados. O cabeleireiro
é ponto de encontro,
onde experimentam variantes
do corte do Jaca, com
desenhos riscados a gilete
rente ao couro cabeludo.
Fazem unhas, tiram sobrancelhas,
depilam-se,
usam brincos brilhantes,
aparelho colorido nos dentes
e trocam a cor dos cabelos
com uma frequência impressionante. As novas
tendências espalham-se pelo Youtube.

A escola, como sempre, não abraça este processo.
Os que não abandonaram os estudos só a frequentam
porque a família insiste. Nada a ver com
preguiça; passam o dia pesquisando novos passos,
gravando vídeos, conectados pela internet.

Têm uma legião de fãs. Cada vídeo ou comentário
postado é curtido por centenas, até milhares de
pessoas. Um deles tem mil perfis falsos no Face.
Jeffinho sequer dança tão bem quanto feras como
Breguete, Iltinho, Pablinho, Sheick ou Pelúcia;
nem é tão bonito assim.
Mas é um mestre intuitivo
da manipulação da imagem
e do uso das novas
mídias. Verdade que já
tem empresário, que leva
porcentagem alta dos cachês
dos shows em que se
apresenta .

O Passinho está criando
um mercado. Além dos
shows convocados por MCs, alimenta web-rádios
e pequenos fabricantes de camisetas. Está na moda.
Teve “flashmob” na estação do metrô, a Coca-
Cola patrocinou campeonatos entre dançarinos,
produziu um vídeo que está no Youtube e já é viral.
A final da Batalha do Passinho deste ano foi
disputada no estúdio do “Caldeirão do Huck”. Alguns
participaram na abertura dos Jogos Paraolímpicos
em Londres em 2012 e do Criança Esperança
este ano. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro
organizou um curso de férias onde a molecada
do Passinho trocou experiências com alunas
da Escola de Ballet Maria Oleneva.

Poucos poderão ganhar a vida como bailarinos,
assim como nem todos os artistas sobrevivem
do palco. Escritores sempre dependeram
de algum emprego fixo. Uma minoria dos milhares
de jornalistas formados a cada ano chega
a uma redação de jornal ou de televisão. Nem
por isto são vítimas. Os “lekes” são exemplos de
talento, força de vontade e honradez. A história
deles inclui ingredientes que nos alegram e nos
perturbam. Mas é certo que aponta uma sociedade
em transformação.

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