O
líder do Bom Senso F.C., o movimento de jogadores que pressiona a CBF
por um calendário racional, diz que o "jeitinho brasileiro" foi o grande
mal do futebol.
Paulo
André Cren Benini é um jogador fora do padrão. Enquanto a maioria de
seus colegas passa o tempo na concentração jogando videogame, ele lê
Dostoievski e Voltaire, pinta e escreve. Nas horas de folga, os boieiros
vão a um churrasco com pagode e Paulo André prefere os museus.
Aos
30 anos, o zagueiro campeão mundial pelo Corinthians (contratado do Le
Mans da França, onde atuou durante quatro temporadas) resolveu
aproveitar sua experiência na Europa e a capacidade de liderança para
promover um inédito movimento de jogadores que enfrenta a sisuda e
antiquada Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na organização dos
campeonatos e mesmo na gestão financeira dos clubes. Entre uma partida e
uma reunião Paulo André falou a VEJA.
Há
dois pontos principais. O primeiro é a redução do número de jogos dos
clubes da elite e o aumento do calendário para os times das divisões
inferiores. O segundo é a implementação do que chamamos defair play
financeiro, com o objetivo de punir os clubes que gastarem mais do que
arrecadarem.
Como começou esse movimento?
O
Alex (meia do Coritiba) e o Juan (zagueiro do Internacional) tiveram
uma primeira conversa depois de um jogo (em 1º de setembro). Soube da
conversa, liguei para o Alex e em cinco minutos a gente decidiu começar
um movimento. Daí, convidamos outros atletas. Vieram o Juninho
Pernambucano, o Seedorf. o Rogério Ceni, o Edu Dracena, o Fred e o
Elias. A queixa é geral. Há uma sensação unânime. Quem volta da Europa
vê que o potencial humano no Brasil é gigantesco, mas que a estrutura
está emperrada, enferrujada. A gente tem tudo neste país, por que não
explorar melhor?
Nas
mais recentes rodadas do Campeonato Brasileiro, os jogadores entraram
em campo com faixas e ficaram parados por alguns segundos depois do
apito inicial do juiz. Quais são os próximos protestos?
A
ideia é aumentar gradativamente enquanto não houver uma resposta da CBF
às nossas exigências. O jogo do Flamengo com o São Paulo (em 13 de
novembro, quando os jogadores adversários ficaram trocando passes de um
lado para o outro do campo por um minuto) foi marcante. O torcedor
claramente entendeu e apoiou.
Os jogadores podem entrar em greve?
É
uma possibilidade real. Não é um absurdo se resolvermos parar. A gente
espera que a CBF apresente uma proposta que seja benéfica para o
futebol. Senão, não há muito que fazer além da greve. As ameaças de
punição não vão nos deter.
A greve pode ocorrer ainda neste campeonato?
A
CBF não acredita na força do nosso movimento. Eles estão nos testando e
vamos aumentar o tom. Nas próximas rodadas, os jogos começam no mesmo
horário, o que aumenta a repercussão do que fizermos. O risco de greve é
muito grande. Já nos deram a ideia até de cada time fazer um gol contra
de propósito. Mas isso seria inaceitável pelo desrespeito com o
torcedor. Aceito desafiar os poderosos, mas não desmoralizar o futebol.
Como vocês combinam as ações?
Há 150 jogadores que trocam mensagens pelo WhatsApp. Hoje mesmo (sexta-feira retrasada) trocamos mais de 200.
O jogador hoje é mais consciente?
No
geral, o jogador tem mais acesso à informação. Ainda há medo de se
posicionar e sofrer retaliação da torcida, da diretoria e das entidades,
mas entre os jogadores há muita discussão sobre os problemas do
futebol. Entretanto, pelo medo de retaliação e por historicamente a
classe ser desunida, é difícil o jogador se expor em público.
Os líderes do Bom Senso F.C. são atletas em fim de carreira. Os novos estão com medo ou foram orientados a não protestar?
Os
dois. Os jogadores que começaram a reclamar do calendário foram aqueles
que passaram um tempo na Europa e voltaram para o Brasil. A pergunta
que todos fazem é: "Como é possível eu ter saído daqui há tanto tempo e
nada ter melhorado?". Começamos a conversar e perceber a evidente
precariedade do futebol no nosso país. Por terem uma condição financeira
melhor, os mais velhos são o carro-chefe do grupo. Os mais novos sempre
estão mais expostos a retaliações.
A CBF atrapalha o futebol brasileiro?
A
Fifa sabe que seu papel é vender futebol. Percebeu que para ganhar mais
dinheiro é preciso qualificar o produto. Então, começou a cuidar do
gramado, do estádio, da qualidade dos times. É o padrão Fifa. Na Uefa é a
mesma coisa. É uma entidade que organiza a Champions League e a Euro e
decidiu dar prioridade à capacitação de treinadores. Porque são eles os
formadores dos atletas, que vão desenvolver o futebol-arte e, assim,
atrair público para o espetáculo. Dessa forma, a Uefa ganha mais
dinheiro. Já a CBF não faz nada para melhorar a qualidade do que vende.
Nada. A CBF não entende que o ingresso está caro para o jogo que está
sendo vendido. A CBF ganha milhões com a seleção, com os patrocínios e,
segundo ela, não ganha nada com o Campeonato Brasileiro. Talvez seja por
isso que ela não se interesse em fazer um calendário que propicie um
futebol de qualidade. Os gramados são horríveis, os antigos estádios
estão péssimos. Tem jogo todo dia na televisão sem o menor critério de
qualidade. Só quantidade. Seria fundamental adotar o modelo inglês, em
que a confederação cuida da seleção e a liga de clubes dos campeonatos.
A Rede Globo tem interesse nessa mudança?
A
Globo tem diálogo total com o movimento. Eles estão sendo solícitos e
são os mais preparados para a discussão do novo calendário. A Globo
aceita que não haja mais futebol em janeiro. Como a audiência nesse mês é
baixa, é melhor aumentar a pré-temporada. Eles estão no direito deles,
de lucrar com o futebol. O problema é a CBF, que não defende o futebol.
Um caminho seria limitar o mandato dos dirigentes das entidades esportivas?
Sim.
A democracia e a alternância de poder são fundamentais para qualquer
instituição. A medida provisória que prevê o direito a apenas uma
reeleição nas federações que usam dinheiro público é crucial. O direito a
voto direto dos atletas também tem o apoio do Bom Senso F.C.
Como respondem à crítica de que vocês querem jogar menos e ganhar a mesma coisa?
Essa
é a maior inverdade. Reduzindo o número de jogos, o espetáculo fica
melhor e o interesse do público aumenta. A gente busca o bem do futebol.
não nosso conforto. Queremos reduzir o limite anual máximo de jogos
para 73. Hoje, o Campeonato Brasileiro tem 38 jogos, a Copa Libertadores
catorze, ou dezesseis se a equipe tiver de disputar a pré-Libertadores.
Ainda há a Sul-Americana e a Copa do Brasil. Antes de tudo isso, os
times têm de disputar os campeonatos estaduais. Para fazer um estadual
com um mínimo de charme, uma das propostas é a redução de dezenove para
sete jogos, com as mesmas regras da Copa do Mundo. Nesse formato, mesmo
um estadual com 32 times pode ter um campeão definido em apenas um mês.
No caso de clubes menores, da terceira à quinta divisão do Brasileiro, o
problema é o oposto. Eles precisam de mais jogos. É a única maneira de
sobreviverem.
Os jogadores aceitam ganhar menos para que os clubes reorganizem suas finanças?
Sim.
O movimento defende a implantação do fair play financeiro, que pode
resultar na redução dos altos salários dos jogadores. O clube terá de
apresentar a cada três meses uma comprovação do pagamento de todas as
suas obrigações, correndo o risco de ser suspenso se estiver
inadimplente. Para conseguirem isso, alguns times deverão contar com
elencos mais baratos. O torcedor e os atletas terão de entender que esse
é o preço a ser pago para que o futebol brasileiro se reorganize.
O que, nos serviços brasileiros, tem padrão Fifa?
De padrão Fifa não temos nada. A CBF é padrão "jeitinho brasileiro".
É bom para o Brasil sediar a Copa do Mundo?
Quando
foi anunciada a Copa com dinheiro privado, eu comprei a ideia. Hoje,
vejo que 90% dos estádios utilizaram dinheiro público. Percebi que não
foi cumprido o combinado.A Copa mexe com o imaginário, desde 1950 o
Brasil sonhava em sediar mais uma. Mas havia outras prioridades para o
uso desse dinheiro. Era melhor investir em educação de qualidade, saúde
pública decente, transporte melhor. Se fosse a Copa do dinheiro privado,
não teria problema. Como não foi, lamento a gastança na construção dos
estádios.
Existe corrupção no futebol?
Existe, assim como na sociedade. Se não houver regulação e fiscalização, haverá desvio.
O futebol brasileiro está decadente?
Está
em crise desde 2002. As vitórias tapam os erros e as péssimas
administrações. O Brasil corre o risco de ganhar a Copa, mascarar os
problemas estruturais e só voltar a essa discussão em dois ou três anos.
Mesmo assim, torço para que o Brasil erga a taça e o futebol melhore.
As duas coisas juntas seriam o verdadeiro legado da Copa.
Como é a rotina de um jogador de primeira divisão?
Desde
os 20 anos eu não vou nem a casamento de amigo. Toda sexta, sábado e
domingo estou concentrado ou jogando. Desde que sou atleta, não viajo no
fim de semana, não sei o que é feriado, não sei o que são dois dias de
folga seguidos.
O
torcedor, como só vê o time nos dias de jogos, na quarta e no domingo,
acha que trabalhamos pouco. É ilusão pensar que todo jogador é
milionário. Só 3% dos profissionais recebem bem a ponto de poder
encerrar a carreira aos 35 anos e viver de renda. Para 97%, a vida é
atribulada e não dá chance de poupar para o futuro.
A vontade de jogar uma partida de primeira fase no estadual é a mesma que se tem em um jogo de Libertadores?
Nem
se compara. Tem dia que você vai para o jogo e o último lugar que
queria estar é no gramado. É um sentimento inconsciente, claro, muito em
razão da pressão psicológica sofrida o ano todo. Fizemos um
levantamento que mostra que o jogador de um grande clube brasileiro tem
vinte dias de folga no ano. Já o trabalhador comum tem 52 fins de
semana. Ou seja, mais de 100 dias.E nossos vinte dias são afetados pela
pressão que sofremos por resultados, pelas críticas, por caras que
atiram rojões ou pedras contra nós.
A concentração é necessária?
Não,
mas para mim acabou sendo útil. Uso o tempo da concentração em coisas
produtivas, como escrever meu livro. Os caras achavam que eu estava
ficando louco, não saía do quarto. Já pintei quadros, vi muito seriado.
Agora gasto o tempo fazendo essa agitação do Bom Senso F.C.
Qual a diferença do cotidiano de um jogador no Brasil e na França?
Aqui
chego sexta-feira às 15h30 para treinar e só volto para casa no domingo
à noite, depois do jogo. Mesmo que eu fique em um bom hotel, são dois
dias e meio concentrado. Como jogo duas vezes por semana, são 160 dias
do ano concentrado. Na Europa, eu me apresentava na hora do almoço,
descansava e jogava à noite. Não tem concentração. Há ainda o exagero
das viagens. Lá, a média de um time é viajar 8000 quilômetros por
temporada. Aqui, os grandes clubes de São Paulo voam 35000 só nos
campeonatos nacionais. A queda de rendimento é inevitável.
Você
pinta e escreve. De onde veio essa motivação?
Quando jovem, fui estudar
porque achava que não seria jogador. Mas virei profissional no Guarani,
ganhei meu dinheiro, fui para a França. Lá, machuquei o joelho e fiz
três cirurgias. Fiquei um ano e meio parado. Aí decidi voltar a estudar,
fui ler filosofia e psicologia, porque estava com depressão. Li tudo de
Dostoievski, tudo de Voltaire. Fiz curso de educação financeira. Fui ao
Louvre e achei tão incrível que resolvi pintar. Não entendo de arte.
Aquilo começou como um hobby para acabar com a minha dor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário