A renúncia de Bento XVI e a crise atual da Igreja Católica
O curto pontificado de Joseph Ratzinger como Bento XVI teve um enorme
valor sintomático. Ele fez vir à tona as contradições e as crises que
envolvem o lugar da Igreja católica no mundo. Quis confrontar a
filosofia dos “mestres da suspeita”, Marx, Nietzsche, Freud e Foucault,
intervindo no debate contemporâneo com a força tradicional da
instituição. Quis sustentar sibilinamente que o cristianismo católico é a
religião superior aos outros monoteísmos (e foi defendido nisso por
René Girard, o autor de “A violência e o sagrado”). Estava no papel que
escolheu, mas por isso mesmo o desfecho é tão significativo, tanto pelo
seu ineditismo quanto pelas suas implicações filosóficas. Ao mesmo
tempo, o pensador político de currículo implacável, no plano
doutrinário, deixou a política interna e os subterrâneos do Vaticano ao
sabor dos apetites da Cúria e da incúria.
Nada que uma renúncia
não engrandeça. A sua figura ambivalente de lobo inquisitorial em pele
de ovelha sai santificada pelo gesto moral do desapego, pela confissão
de fraqueza e pelo descortino com que fez as cartas serem reembaralhadas
e o jogo recomeçar. Os sinais dos tempos passaram a soar, no entanto,
de maneira nova e indisfarçável.
Um dos meus profetas é Oswald de
Andrade (que une de maneira original Marx, Nietzsche, Freud e o
pensamento selvagem). De um ponto de vista oswaldiano, a crise atual da
igreja pode ser vista como um capítulo da longa “crise da filosofia
messiânica” que atravessa os séculos. O patriarcado, a negação da
sexualidade, a concentração das riquezas, dos poderes e a postergação da
felicidade para um futuro pós-morte são formas da evitação da
felicidade na terra, zeladas por uma casta sacerdotal que se formou em
condições já longínquas no tempo, e que vem passando pela erosão dos
processos históricos.
Oswald reconhece que o poder de Roma se
plasmou na síntese política, filosófica e religiosa “do arbítrio
judaico, do motor imóvel de Aristóteles e da experiência mística
alexandrina”. Sem Roma, diz ele, “Cristo não teria ocupado por vinte
séculos os cimos messiânicos do Patriarcado”. E sem Paulo, “o escravo
não teria pleiteado a dignidade individual em Cristo que foi a longínqua
semente da revolução burguesa”. Assim, o cristianismo é uma religião de
vocação revolucionária, que apontou para a revolução burguesa, para a
revolução social e para os direitos humanos. Mas a burguesia já
“estornou” há vários séculos a dívida messiânica, convertendo-a em
extratos bancários e finalmente em cartões de crédito, e o
protestantismo já legitimou esse estorno como modalidade da graça. A
adaptação do cristianismo ao espírito do capitalismo encontra sua
vertente popular nos evangélicos, que crescem entre aquelas populações
que acusam na prática o esvaziamento anacrônico dos ritos católicos,
quando incapazes de responder a essas realidades. Nesse quadro, a Igreja
romana, com suas pompas hierárquicas e seu imobilismo, tende a
converter-se numa relíquia patriarcal a figurar, como peça de museu,
entre aquelas que ela mesma colecionou.
Fazem parte essencial da
crise das formas de poder patriarcal a emancipação feminina, a liberação
da sexualidade como direito e como expressão individual, as
reivindicações pelo reconhecimento universal dos direitos dos gays, pelo
direito ao aborto e demais decorrências. Mas seria então o grande papel
restante dessa instituição milenar, o de contrapor-se a qualquer preço
ao avanço desses sinais da modernidade, como queria Bento XVI?
Pergunta-se também como se sustenta eticamente essa ciosa denegação do
desejo sexual por parte de uma instituição que enfrenta mal seus casos
de pedofilia, e que pretenderia aplicar essa mesma denegação a seu
bilhão de fieis. A Igreja que tinha isolado os contágios marxistas da
Teologia da Libertação ficou às voltas com os rebotes freudianos das
suas pulsões e dos seus recalques.
Como estava previsto, a bússola
do poder romano teve que inverter seu prumo, apontar para o sul, para o
“fim do mundo”, para um lugar onde as bases do catolicismo fossem mais
autênticas e numerosas, além de postas em risco de diminuição. Mas a
fumaça branca revelou “a zebra do ano”, como disse Tom Zé, aquele que
nenhum vaticanista adivinhou. O rito é poderoso em si, quando faz-se o
nada e da sacada surge o ser, dessa vez na forma do primeiro não
europeu, jesuíta e Francisco. E pelo menos sem a voz melíflua do
antecessor. Oswald chama isso de “sentimento órfico”, o poder
carismático que a religião divide com a arte, o espetáculo, o esporte. A
Igreja na defensiva está agora jogando, desde Roma, pelos flancos do
grande tabuleiro. Até que ponto mudará o jogo?