quinta-feira, 2 de maio de 2013

Tema em discussão: Publicação de biografias não autorizadas

 Opinião: O Globo

Um dos gêneros mais nobres da literatura é a biografia. Antes da era dos documentários, era a única maneira de se conhecer com alguma profundidade a vida dos grandes homens. Assim, lemos até hoje as “Vidas paralelas” em que Plutarco pôs lado a lado personalidades da Grécia e da Roma antigas. Pouca coisa, na literatura inglesa, é tão sedutora quanto a vida de Samuel Johnson escrita por Boswell. Escritores franceses modernos, como André Maurois, fizeram fama e carreira escrevendo uma grande biografia atrás da outra — de Balzac, de Victor Hugo, de Chateaubriand. Num outro plano, para o mundo moderno, foi importante conhecer histórias terríveis como a de Hitler, a de Stalin, a de Mao Tse-tung, para poder avaliar os falsos caminhos seguidos pelas mentes autoritárias.

Nada disso seria possível no Brasil de hoje, a julgar pelos obstáculos legais que se criaram para quem tenha a pretensão de biografar alguém.

A Constituição brasileira garante a liberdade de expressão. Mas o Código Civil, em seu artigo 20, que pretende proteger a “imagem” de cada indivíduo, abre uma brecha para coisas que são o mais puro retrato de uma mentalidade autoritária.

Também há, nisso, interesses comerciais — como os de parentes de pessoas famosas que pretendem ganhar dinheiro administrando esse tipo de herança. Assim passaram por verdadeiros purgatórios os que quiseram escrever a vida de um Garrincha, ou de um Guimarães Rosa.
É diferente em países desenvolvidos como os Estados Unidos. Ali, onde as biografias ocupam espaço importante nas estantes particulares ou das livrarias, existe a chamada “biografia autorizada”. Mas isto não significa que esteja vedado o caminho para outras biografias. Sobretudo no caso de pessoas mortas, sequer existe o conceito de “difamação” que aqui é brandido por qualquer advogado desejoso de satisfazer o seu cliente.

No Brasil, o terreno da biografia tornou-se campo minado. E, por causa disso, não existe, por exemplo, biografia competente de uma figura como Mário de Andrade. Familiares de Manuel Bandeira, de Cecilia Meireles, de Guimarães Rosa criam outras tantas fortalezas em torno do que consideram ser de sua propriedade.

Roberto Carlos chegou ao ponto, recentemente, de estender essa postura à própria história da Jovem Guarda, de que ele evidentemente faz parte.

Um projeto de lei destinado a consertar esses abusos passou incólume pela Comissão de Constituição de Justiça da Câmara e já estava a caminho do Senado quando foi barrado por um recurso do deputado Marcos Rogério (PDT-RO), determinando que o texto seja antes debatido no plenário da Câmara. Sua argumentação: biografias podem prejudicar políticos em campanha. É o que basta para mostrar como, nesse assunto, fomos nos afastando da essência do problema

 | Outra opinião |

 Cheque em branco - MARCO ANTÔNIO CAMPOS

Alguém cogita usar um apartamento para alugar, sem dar qualquer quantia em dinheiro ao proprietário e sem pedir a ele qualquer autorização? Será razoável que se utilize a obra musical ou literária de um autor, sem a autorização dele, para ganhar dinheiro, por exemplo, incluindo-a em propagandas comerciais? Parece lógico que se possa utilizar o nome de alguém como se estivesse apoiando determinado empreendimento comercial quando esta pessoa jamais autorizou a utilização ou nada está recebendo por isto?

Nestes exemplos de utilização desautorizada de bens juridicamente protegidos, tais como a propriedade, o direito autoral e o nome, ficam claras a impossibilidade e a completa falta de razoabilidade destas ideias. Trata-se exatamente da mesma questão com relação à imagem (outro bem jurídico protegido) e às chamadas biografias não autorizadas.

A questão vem sendo colocada como uma discussão sobre a liberdade de expressão. Gostaria de respeitosamente discordar. Não me parece que seja este o ponto central da discussão. O foco, em minha opinião, é a necessidade ou não de autorização da pessoa biografada.

Ou seja: tem lógica escrever uma biografia sobre uma pessoa famosa (que levou anos de esforço e talento pessoal para construir seu nome profissional ou artístico), levar este livro para ser editado por uma empresa comercial e junto com esta empresa ganhar o máximo de dinheiro possível com este projeto, mas não cogitar a necessidade de pedir autorização para a pessoa enfocada — personagem central — para escrevê-lo e/ou comercializá-lo?

E a publicação de uma biografia é exatamente isto: uma exploração comercial da imagem de alguém. A liberdade de expressão pressupõe, se renova e se reforça, em qualquer circunstância, respeito aos direitos dos outros. Em nada favorece a liberdade de expressão o sacrifício injustificado do direito à imagem das pessoas.

Não altera este quadro o argumento de que a necessidade de autorização pode deixar fora de mercado fatos históricos do país ou relevantes para o conhecimento da sociedade. Que tais publicações sejam feitas sob modalidade não comercial, pelo jornalismo diário ou semanal, ou em livros de distribuição gratuita, onde não é necessária a autorização.

Aos que defendem a mudança da lei para retirar a necessidade de autorização do biografado, apenas lembro que este “cheque em branco” para escrever estará sendo passado não somente aos ótimos escritores que defendem as biografias não autorizadas, mas a todos os piores caçadores de fofocas de plantão ou a meros escribas interessados em lucros fáceis com a história dos outros.

Trata-se apenas de minha opinião sobre este tema. A democracia é feita e se fortalece da convivência entre opiniões diferentes.

Marco Antônio Campos é advogado