quarta-feira, 6 de novembro de 2013

E a corrente cresce - MÃE STELLA

A Tarde -06/11/2013

Maria Stella de Azevedo Santos
Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
opoafonja@gmail.com


Bira Gordo conta a
trajetória da libertação
dos escravos alertando
para a necessidade
constante de luta
pela liberdade, pois
as correntes de ferro,
hoje imperceptíveis,
marginalizam
e excluem


Meus leitores sabem que venho comentando sobre a vida e a obra dos imortais que me antecederam na cadeira 33 da Academia de Letras da Bahia. É com muita alegria que hoje escrevo sobre meu antecessor e grande amigo Ubiratan Castro, fazendo um paralelo com o patrono da referida cadeira, o grande baiano Castro Alves. Somos elos de uma mesma corrente, na qual sempre nos seguramos para lutar por uma causa em comum: a igualdade de condições para todos. Cada um de nós lutando por honrar e glorificar o povo que, mesmo chegando escravizado ao Brasil, soube fazer história, ajudando na formação de nosso país em todas as áreas. Cada um de nós lutando por esse ideal de acordo com a época em que viveu e com os dons que recebeu do Deus Supremo.

A alma poética de Castro Alves grito clamando pela liberdade física dos negros; Bira Gordo, com sua capacidade única de contar a história e estórias, tudo fez para mostrar a contribuição indiscutível deste povo; eu, como cultuadora de divindades, sigo esforçando-me no sentido de fazer com que a religião trazida pelo povo africano para o Brasil seja mais bem compreendida e, assim, mais respeitada.

Imitando o historiador Ubiratan Castro de Araújo, tentei construir meu discurso de posse narrando fatos de modo histórico, mas com a leveza de uma contadora de "causos". Nascido em Salvador, em 22 de dezembro de 1948, o professor doutor Ubiratan Castro de Araújo foi graduado em história e em direito. O fato de ter recebido o troféu Clementina de Jesus da União dos Negros pela Igualdade e a medalha Zumbi dos Palmares da Câmara Municipal de Salvador mostra o reconhecimento pelo empenho de Bira Gordo contra a discriminação racial. Foram inúmeras as vezes que nos encontramos em seminários para reafirmar a grandeza histórica do povo negro e sua sabedoria ancestral, que é capaz de orientar qualquer um que dela se aposse. Afinal, sabedoria não tem cor e não pertence a nenhuma raça específica.

A frágil saúde de Bira Gordo, como gostava de ser chamado, não o impediu de dar uma grande contribuição ao mundo intelectual e de transmitir alegria por onde passava e para todos com quem convivia. Sua prestabilidade era incontestável! Nunca se negava a participar de nenhum evento para o qual fosse convidado a contribuir com sua forma única de estoriar a história. Intelectual cinco estrelas; contador de "causos" de estrelas incontáveis.

Bira registrou pouco seu vasto conhecimento. Foram apenas três os livros por ele escritos: A guerra da Bahia, Salvador era assim – memórias da cidade e Sete histórias de negro. Editou pouco, mas faloumuito. E era uma fala deliciosa de ser ouvida. Em seu único livro de ficção, Sete histórias de negro, ele conseguiu reunir muito do que era, sabia e lutava. Concordo, por experiência própria, com a opinião de Emiliano Queiroz sobre Bira: "O mestre que compartilhava sua erudição como quem contasse histórias à beira da fogueira".

Um exemplo claro dessa capacidade que tinha Ubiratan Castro, um intelectual do povo, é a última história escrita em seu livro Sete histórias de negro. Intitulada O protesto do poeta, que narra uma conversa que acontece em uma sessão espírita entre Castro Alves e um grupo de pessoas. Como bom piadista que era, não escapou da mente criativa de Bira Gordo nem o patrono da cadeira que ocupava na Academia de Letras da Bahia.

Para Bira, a vida parecia ser uma piada e a piada uma coisa muito séria. Condensada de maneira irônica no "causo" do protesto do poeta, Bira conta a trajetória da libertação dos escravos no Brasil ocorrida no passado, alertando para a necessidade constante por uma luta pela liberdade, pois as correntes de ferro, antes visíveis, são, no presente, correntes imperceptíveis, que marginalizam e excluem. Bira Gordo nos deixou há pouco tempo, em 3 de janeiro do ano em curso. Se hoje ainda estivesse conosco, digo fisicamente, é provável que buscasse na poesia de Castro Alves a força que precisamos para continuar enaltecendo um povo guerreiro, ao mesmo tempo pacífico e afetuoso, que soube amar e amamentar quem o escravizou.