domingo, 24 de novembro de 2013

Poesia renovada

 O Globo 24/11/2013

AOS PÉS DE ANA C.



Nome de destaque entre os chamados poetas marginais, com uma obra que permanece ao longo dos anos, Ana Cristina Cesar tem seus vários livros reunidos no volume ‘Poética’, lançamento da Companhia das Letras que lembra os 30 anos de sua morte e que traz, ainda, alguns inéditos da autora

NANI RUBIN
nani@oglobo.com.br

Ana Cristina Cesar morreu há 30 anos, mas, como diz um de seus amigos mais próximos, o também poeta Armando Freitas Filho, está vivíssima, mais viva do que nunca. A poeta que teve apenas um livro publicado comercialmente (“A teus pés”, em 1981), antes de se jogar do apartamento de seus pais, em Copacabana, num ensolarado 29 de outubro de 1983, teve mais seis volumes publicados postumamente, virou objeto de procura em sebos, fio condutor de espetáculos de dança e de teatro tema de teses acadêmicas e documentário. Agora, sua obra volta a ficar disponível, com o lançamento, amanhã, de “Poética”, edição da Companhia das Letras, detentora dos direitos sobre os escritos de Ana C., como às vezes assinava.


“Poética” reúne, além de “A teus pés”, seus três livros lançados de modo independente — “Cenas de abril” (1979), “Correspondência completa” (1979) e “Luvas de pelica” (1980). Traz ainda dois dos títulos lançados após sua morte: “Inéditos e dispersos” (1985), organizado por Freitas Filho, e “Antigos e soltos” (2008) selecionados por Viviana Bosi.

Um apêndice com textos de Armando Freitas Filho, Clara Alvim e Silviano Santiago, entre outros, e uma cronologia assinada por Waldo Cesar, pai da autora, enriquecem o volume, que tem inéditos garimpados por Mariano Marovatto no acervo da poeta no Instituto Moreira Salles. O capítulo, chamado “Visitas à oficina”, inclui um poema escrito à máquina pela secundarista do Colégio Bennett, aos 16 anos (leia ao lado), sobre o qual o professor escreveu “Lindo!”. Outro, “Noite carioca II”, deveria ter entrado em “A teus pés”. Freitas Filho, curador editorial de “Poética”, a quem Ana Cristina pediu aos pais que entregassem todos os seus escrito caso lhe acontecesse algo, encara a publicação dos inéditos, desde 1985, como uma espécie de deslealdade permitida:

— Eu traí a Ana para nós termos a Ana. Pensei assim: se o Max Brod tivesse aceitado o pedido de Kafka de destruir seus manuscritos, a gente não teria Kafka — compara ele, que pensou (e pesou) cuidadosamente cada um dos textos. — Eu me fazia o tempo todo a pergunta: o que a Ana iria achar? Porque ela tinha uma autoexigência enorme, tudo tinha que ser perfeito — conta ele, que fala com conhecimento de causa: foi revisor final de “A teus pés”, leitor privilegiado e personagem da “Correspondência completa”, sob o nome de Gil (Mary, outra personagem, é Heloisa Buarque de Hollanda, que, em 1976, incluiu Ana Cristina, então sem nenhum livro publicado, na sua mítica antologia “26 poetas hoje”).

O amigo e confidente escolheu o que achou “que valesse a pena”, mesmo duvidando, como diz, “que ela aprovasse com grau dez, que era a nota dela, tudo isso”. A menina que ditava poemas para a mãe aos 5 anos de idade, que escreveu, aos 16, “Eu não sabia/ que virar pelo avesso/ era uma experiência mortal”, que se dizia “uma mulher do século XIX/ disfarçada em século XX”, e que, dois meses antes de morrer, declarou em versos “Estou vivendo de hora em hora, com muito temor”, era uma poeta sofisticada, leitora de Emily Dickinson, Katherine Mansfield (sua tese de mestrado em Essex, na Inglaterra, foi sobre “Bliss”, da autora), Jorge de Lima e Manuel Bandeira. Como seus colegas de geração, partiu de uma espécie de diário íntimo para alçar voos mais complexos, embebidos em feminilidade, com um texto trabalhado, “tudo muito bem feito entre o cálculo e o acaso”, define Freitas Filho:

— Enquanto a geração marginal fazia um poema do tipo polaroide, de revelação instantânea, a poesia da Ana sempre exigiu o contrário, uma segunda leitura para você apreender aquilo, para ir em frente com aquilo. Por isso ela durou.

Por isso, também, seus leitores se renovam. Hoje com 28 anos, a atriz Bianca Comparato conheceu sua poesia aos 19, na PUC, onde Ana Cristina cursou Letras, e agora, prepara-se para interpretála no cinema. Cooptou para o projeto o também poeta Michel Melamed, que escreverá o roteiro, e a cineasta Julia Murat.

— O sucesso do Paulo Leminski (“Toda poesia”, da mesma editora, vendeu 65 mil exemplares) mostra que existe um desejo por poesia — diz a atriz, que, enquanto trabalha no argumento, vai conquistando, no boca a boca, ou no poema a poema, novos fãs para Ana C.