sexta-feira, 7 de março de 2014

O sorriso do general - Carlos Herculano Lopes‏

O sorriso do general
Carlos Herculano Lopes

carloslopes.mg@diariosassociados.com.br
Estado de Minas: 07/03/2014

 
Nesses dias de carnaval, durante um recesso no trabalho, aproveitei para fazer algumas coisas. Tenho evitado ao máximo viajar nos feriados devido à loucura das estradas e dos aeroportos. Com o tempo à disposição, dei uma fugida ao São Pedro para ver o desfile do bloco de Aline Calixto e me encontrar com uns amigos. Fui à Praça da Liberdade, onde assisti, com direito até a participar um pouco, as performances das Baianas Ozadas, que arrasaram. Passei pelo Mercado Central para tomar uma cerveja e dar um dedo de prosa com a amiga Ana Araújo no seu salão. E também ouvi muito jazz, com duas feras do gênero: Duke Ellington e Louis Armstrong, cuja genialidade e importância dispensam maiores comentários.

Foi tempo ainda, música à parte, para terminar a leitura de Memória do fogo, de Eduardo Galeano, lançado no Brasil pela L&PM, e com o qual estava envolvido há dois meses. É uma bela trilogia, com mais de 700 páginas, na qual o escritor, de forma que não dá para definir, mas sempre baseado em fatos reais, faz um levantamento da história das Américas do Sul, Central e do Norte, desde a era pré-colombiana até os anos de 1980. Como a música de Duke Ellington e Louis Armstrong, também essa leitura é uma experiência indispensável e única. Não dá para ser a mesma pessoa depois de terminada.

São centenas de pequenas historietas, nas quais Eduardo Galeano, que está pensando em se lançar candidato às próximas eleições para o Parlamento uruguaio, com chances de se eleger, vai nos levando, século a século, a ver como as coisas por aqui, num misto de infâmia, horror e surrealismo, foram sendo construídas. Alguns relatos são surpreendentes, difícil até de acreditar verdadeiros, embora o sejam.

Num deles, só para ficar nesse exemplo, o general Juan Domingo Perón, cuja sombra, como um fantasma, até hoje se faz presente na Argentina, ajudando a definir seus rumos, se encontra exilado em Assunção, no Paraguai. O ano é 1955. Acabava de ser deposto por um golpe de estado. Um dos vários acontecidos no seu país, como de resto em toda a América do Sul. Melancólico, está hospedado na casa de um amigo. Talvez tenha até tomado (não sei se bebia ou não) umas taças a mais de vinho ou caña. Poderia também, vá se saber, estar com alguma saudade de Evita, que por esses tempos havia morrido.

De repente, num gesto teatral, o antes poderoso Perón se levanta, abre os braços e, como se estivesse na sacada da Casa Rosada, diz ao anfitrião, que é todo ouvidos: “Com o meu sorriso, eu levantava multidões”. Depois, sem esconder a decepção, reclama: diz que o povo é ingrato, pensa mais com a barriga do que com o coração. E mais, que não resistiu ao golpe para evitar a morte de milhares de pessoas.

O amigo não ousa falar nada, apenas ouve. É quando o general pergunta: “Você quer o meu sorriso?”. Esse torna a olhá-lo, espantado. Então, Juan Domingo Perón, que tempos depois voltaria fugazmente ao poder, dessa vez já casado com Isabelita, leva um dedo à boca, tira a dentadura e a coloca nas mãos do amigo.

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