domingo, 6 de abril de 2014

"A cesárea deve ser exceção e não regra" - Marilena Pereira

A Tarde/BA 06/04/2014
Revista Muito 
Fabiana Mascarenhas

 

A obstetra Marilena Pereira defende o parto natural


Ela já perdeu a conta do número de partos que assistiu em 30 anos de carreira como obstetra. Mas, há pelo menos 20, Marilena Pereira tem priorizado trazer crianças ao mundo de maneira natural. Muitas delas nascidas em domicílio, no aconchego da família. Formada pela Ufba, seu interesse pela área surgiu após a leitura de um trabalho sobre parto de cócoras do médico curitibano Moysés Paciornik, que a ajudou a entender que este era o caminho para não se tornar mais uma obstetra a aumentar o número escandaloso de cesáreas realizados no país. O que começou de maneira intuitiva e sigilosa - por conta do temor das críticas dos colegas - popularizou-se diante da demanda de mulheres que desejavam ter filhos de forma natural. A experiência acumulada a colocou entre as referências em parto natural no Brasil e representante do Movimento Nacional pela Humanização do Parto. Atualmente, é coordenadora de obstetrícia do Centro de Parto Normal da Mansão do Caminho, no qual assiste partos pelo SUS. É também obstetra da Maternidade Climério de Oliveira, além de atender pacientes em sua clínica particular. Duas décadas depois, o cenário é outro, e ela diz que já não teme possíveis críticas.
 

Há médicos que fazem duras críticas ao parto humanizado, sobretudo em domicílio. Para eles, é arriscado para a mãe e o bebê. Como a senhora lida com essas críticas?
Quando comecei, há cerca de 20 anos, havia muito receio. Sabia que não estava fazendo errado, mas temia a crítica dos colegas. Me formei dentro do modelo medicalocêntrico. No meio do processo, conheci o trabalho do médico curitibano Moysés Paciornik e passei um tempo no hospital dele. Me apaixonei. Sabia que era daquela forma que gostaria de atuar. Também participei de uma conferência da Rede Nacional pela Humanização do Parto (Rehuna). Um cenário novo se descortinou para mim porque vi que existiam, de fato, evidências científicas. Encontrar a medicina baseada em evidências foi uma transformação. Isso me deu mais segurança para continuar. Inicialmente, fazia tudo de forma intuitiva e sigilosa, mas, diante da enorme demanda das mulheres que queriam ter os filhos de forma natural, o meu trabalho se popularizou. Foi a partir daí que comecei a ganhar o apoio de outros profissionais e dos pais. Hoje já não temo as críticas dos colegas. O médico que critica não sabe do que está falando, não conhece o assunto.


Mas há,de fato,estudos que comparem a taxa de mortalidade dos partos hospitalares com os domiciliares?Sim. Estudos recentes mostram que há diferenças de desfechos desfavoráveis, tanto para a mãe quanto paraobebê, quando se compara o parto hospitalar com o domiciliar. Mas quando um parto domiciliar é assistido por profissionais capacitados, que sabem lidar com emergências, os riscos são pequenos. A vantagem de estar em ambiente hospitalar é que, se alguma complicação ocorrer, a possibilidade de resolução é mais rápida. Mas a mulher pode optar por ter seu filho no hospital, se dessa forma se sentir mais segura. Isso não a impede de ter um filho de forma natural. Só não se deve tirar dela esse direito e colocar sempre a cesárea como melhor opção.


Quais as complicações mais comuns em um parto domiciliar?
As complicações de qualquer parto. A parada de progressão é um exemplo (quando a mulher está em trabalho de parto e para a dilatação). Mas temos formas de acompanhar essa evolução e ver até quando se pode esperar. Só quando o risco é grande, optamos pela remoção para um hospital. Também pode ocorrer febre ou algum sinal de infecção materna ou alteração da frequência cardíaca do bebê. Essas são as mais comuns. Uma hemorragia pós-parto também, mas é menos comum. Nesses 20 anos, por exemplo, nunca tive nenhuma remoção para hospital por hemorragia. E há também uma série de complicações que podem ocorrer em uma cesárea.

Em quais situações a cirurgia deve, de fato, ser indicada?
As indicações são poucas. Diabetes e pré-eclâmpsia, sim, mas não necessariamente. A cesárea deve ser indicada se o bebê está em situação transversa (atravessado), placenta prévia oclusiva total (quando a placentafechaocolo uterino), prolapso de cordão (quando ele se exterioriza), e em casos de herpes genital ativa. Qualquer outra indicação deve passar por avaliação criteriosa.


O que seria um parto humanizado?Aquele que respeita as decisões da mulher, no qual o médico não é a figura central. Um parto em que ela possa contar como suporte emocional de uma equipe e o acompanhamento da família, em que possa decidir a forma como vai ter seu filho, que nãoseja somente em posição de litotomia (deitada coma barriga para cima e as pernas levantadas), sem ter o parto induzido ou acelerado com ocitocina ou em uma episiotomia (corte do períneo para supostamente facilitar a passagem do bebê). O parto não era ligado à medicina. Como tempo foi que deixou de ser algo familiar e íntimo para ser medicalizado.

Creio que a senhora concorda que recusar uma recomendação médica é uma decisão difícil. Como lidar com isso?
Primeiro, cominformação. Se a mulher souber em quais situações a cesariana é indicada, ela vai poder ter noção dos riscos. O médico, de fato, é a pessoa que deve orientar os pais, mas a decisão sobre o tipo de parto deve ser da gestante e da família. Uma das coisas que o Movimento pela Humanização do Parto mais preza é o direito à escolha. Mas, na cultura brasileira, só o médico toma decisão, o paciente só obedece.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam cesáreas.Narede privada,oíndice é de 82%. Há uma epidemia?
Sim,sem sombra de dúvida.Mais de 50% de nascimentos realizados no país é por meio desse tipo de cirurgia. A cesárea é extremamente importante, salva inúmeras vidas,mas deve ser exceção e não regra. Isso ocorre,em parte, porque ela passou a ser aceita culturalmente como um modo normal de dar à luz, mas, originalmente, foi criada para aliviar condições adversas maternas ou fetais, quando há riscos para a mãe, o bebê ou para ambos.

O que faz os médicos incentivarem suas pacientes a optarem pela cesárea?
São vários os motivos. Obstetras são pagos apenas pelo parto e não pelas inúmeras horas de acompanhamento, embora hoje isso não seja totalmente verdadeiro–vários planos de saúde remuneram, embora pouco e com restrições.Um parto normal pode durar mais de 24 horas; uma cesariana
dura cerca de 40 minutos. Há o modelo de assistência obstétrica do país, a falta de leitos nos hospitais, a formação do médico, voltada para a patologia e a intervenção, enfim, são muitas coisas.

Um dos argumentos mais usados é que a cirurgia foi solicitada pela própria mãe.
É a cultura da cesariana a pedido da mãe, uma cultura que não é verdadeira, já que há estudo mostrando que 70% das gestantes gostariam de ter filho de modo natural

Muitas mulheres associam parto normal a dor, e a maioria não quer sentir dor.
Muitas desconhecem que há uma série de técnicas de relaxamento para aliviar a dor.O fato de o parto ser em um local acolhedor ,no qual a mulher tem privacidade, segurança e liberdade, contribui para atenuar o desconforto. Ter o apoio de uma enfermeira obstétrica e de uma doula – que auxilia a mãe no parto – também é importante. Há massagens, bolas e banhos que são aliados. Durante a gravidez, fazer atividades comoioga, caminhada,hidroginástica, alongamento ajuda a preparar a musculatura da vagina e da pélvi spara o nascimento. Há ainda a possibilidade de analgesia farmacológica.


A senhora é coordenadora de obstetrícia do Centro d eParto Normal d aMansão do Caminho, no qual realiza partos pelo SUS.Existe algum critério para a gestante ser aceita no centro?
Não. O centro faz parte da Rede Cegonha, programa do Ministério da Saúde, e está aberto para qualquer pessoa. Em 2 anos e meio, já assistimos cerca de mil nascimentos, com alto índice de segurança e satisfação, embora ainda tenhamos uma demanda aquém da nossa capacidade. Para saber mais informações, as pessoas podem entrar em contato pele telefone 71-34098333.

No documentário O Renascimento do Parto, o obstetra e pensador francês Michel Odent fala sobre a ocitocina, o chamado hormônio do amor, e sobr e como o tipo de parto interfere nas emoções. Fale um pouco sobre isso.
Há pesquisadores que mostram que, nos partos com intervenção ou na cesárea, há a perda da liberação natural de hormônios próprios do processo do parto, principalmente da ocitocina, ou hormônio do amor, comodiz MichelOdent. Esse hormônio, liberado pela mãe durante o trabalho de parto, não é apenas responsável pelas contrações uterinas, mas por preparar a mãe para a formação do vínculo com seu bebê e para a amamentação. Esse amor, que ali começa a ser estabelecido, será o protótipo de todas as formas de amor que esse indivíduo irá desenvolver ao longa da vida.


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