sábado, 31 de maio de 2014

A FIFA DAS FIFAS - Arnaldo Bloch

O Globo 31/05/2014

Pode-se gostar da Fifa ou
detestá-la. Eu não gosto.
Uma entidade habitada
por figuras funestas como
Joseph Blatter, atual
presidente, e o recluso
espectro de Ricardo Teixeira,
não é boa coisa.
Uma entidade que mostrou ao Brasil que João
Havelange não era o bom velhinho, uma
entidade que foi indiretamente responsável
pela destruição do Maracanã não merece
empatia. Mas, confesso, eu gosto da Copa. A
Copa do Mundo, aquela que não levava o nome
da Fifa ainda que vinculada à corporação,
sociedade secreta, sei lá, da Copa eu gosto. Se
existe essa Copa pura, ou não, ignoro, mas ela
está impressa em algum lugar simbólico
muito forte que é reativado quando o futebol
se expressa ao longo da competição. Esse fenômeno
independe da própria Fifa, do mercenarismo
dos jogadores, dos intermediários,
do poder da grana, de tudo de ruim.

Isto dito, digo mais: mesmo que não goste
da Fifa, é útil observar que a Fifa tem razão ao
dizer que a “culpa das manifestações” é do
governo. Não que as manifestações sejam
um problema, algo sobre que se deva imputar
uma culpa, muito ao contrário. Mas são
um problema para o governo e um néctar para
a oposição. A Fifa não tem o monopólio do
poder da grana, do fisiologismo, da demagogia.
Se o governo quis fazer a Copa num ano
eleitoral, num país com infraestrutura embaralhada,
num país que planeja aos trancos e
barrancos, a culpa é do governo mesmo. Se o
Brasil escolheu 12 sedes (Blatter diz que Lula
queria que fossem 17), a culpa é do governo.
Foi o governo que assinou um caderno de encargos
absurdo, foi o governo que submeteu
o país às normas da Fifa. Foi o governo que precisou
da Copa Fifa no Brasil. O Brasil sobreviveria
sem a Copa Fifa durante uns bons cem anos,
ou mesmo até que o Sol se extingua daqui a 5 bilhões
de anos, mas o Brasil é o país do futebol, e
o governo crê que o Brasil precisa assegurar sua
hegemonia no futebol e aposta na Copa das Copas.
Não há uma Copa do Mundo paralela, só há
a Copa da Fifa, se quiser Copa das Copas vai ter
que lamber as botas do Blatter. O discurso de
que a seleção é “patrimônio” do Brasil, salvaguarda
da afirmação da identidade e da civilidade
e da cordialidade, isso ninguém engole
mais. O Brasil se transforma.

Mesmo assim, pode-se gostar da Copa, gostar
de Neymar, torcer. Não estão decorando as ruas,
pois hoje metade da vida se passa nas redes, as
outras, ali se discute tudo, futebol, manifestações,
Fifa, figurinhas, pontos de bafo para troca
de figurinhas (e, paradoxalmente, graças às figurinhas
se volta à rua para falar de Copa).

Mas o Brasil vive também uma era de radicalismos,
de forma que quem diz que gosta da Copa
é imediatamente identificado com a Fifa e
com o governo e com superfaturamento e com
tudo de ruim. Quem gosta da Copa, quem quer
torcer, quem quer pintar a rua, vestir verdeamarelo,
é um pária, um traidor da classe média
sacrificada, carece ser patrulhado, ou até agredido.
Nesse campo de batalha fragmentado, vive-
se um suspense jamais visto, a ponto de se
ter dúvidas sobre se a Copa acontecerá ou não.

Claro que a Copa pode não acontecer. Um
planeta em voo livre não detectado pelos observatórios
pode vir a se chocar contra a Terra.
Uma tsunami pode atingir o litoral nacional.
Mas o que se teme é que uma tal convulsão social
se abata sobre o país que impeça a bola de rolar.
Essa profecia, que é mais um desejo que um
cenário provável, tem parentesco com a
crença de que o mundo acabaria em 2012.
Pode até ser que tenha acabado, pode ser
que tenha acabado há mais tempo, pode ser
que nem exista o mundo, que seja uma ilusão
do indivíduo, ou uma ilusão minha, ou
uma ilusão do Neymar, estão aí os solipsistas
para apoiar, ao menos no terreno da filosofia,
essa hipótese. Mas, caso o mundo não tenha
acabado em 2012, e se a Copa de fato acontecer
em 2014, o que será que será?

Será que daqui a duas semanas as ruas estarão
pintadas? Ou, se não estiverem, o brasileiro
vai dispensar o feriado e a cerveja e o
carnaval?

Nesta semana ouvi no refeitório do jornal
um cozinheiro dizer a um nutricionista que
“está ficando mais confiante na seleção”.
Quando começarem as televisões nos botequins
a estourar as primeiras imagens, e
quando Gana e Alemanha se enfrentarem, e
quando vier a Espanha, quando o juiz entrar
em campo e for xingado, e quando Dilma declarar
aberta a Copa das Copas da Fifa das Fifas,
o que será?

Quem vai renunciar ao espetáculo? Quem
torce contra o Brasil vai perder o espetáculo?
Se não houver Copa, como é que se vai torcer
contra o Brasil?

Vexame mesmo é esse álbum de figurinhas.
Papel cada vez pior, fotos horríveis,
projeto gráfico infame. Comprei um, adquiri
30 pacotes e até agora não abri. Deixei na
mala do carro. Como uma caveira de cavalo,
um cachorro enterrado, um montinho artilheiro.
Sinto saudades da estátua do Garrincha
no Maraca e nem sei se vou conseguir assistir
ao vivo a um jogo da Copa (não fui sorteado).
Fazer o quê? Eu não gosto da Fifa. Eu
gosto da Copa. E dos protestos. E do Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário