sábado, 17 de maio de 2014

Resenha de 'No estilo de Jalisco' - Por Marcelo Moutinho

O Globo - 17/05/2014

Primeiro romance do mexicano Juan Pablo Villalobos escrito em português usa encanto do escrete de 1970 para retratar o Brasil atual 
 
Por Marcelo Moutinho*

Clodoaldo recebe a bola e entrega a Pelé, que passa a Gerson. O camisa oito devolve a Clodoaldo. Numa sequência de dribles, o volante enfileira quatro adversários e estica até Rivelino, que faz lançamento longo, alcançando Jairzinho. O ponta ginga na frente do marcador e toca a Pelé. O domínio com o pé direito é preciso, e Pelé não demora a perceber que Carlos Alberto vem chegando, veloz, pela lateral direita. A bola é então rolada no ponto futuro, corre mansamente pela grama e ainda dá um leve quique antes do arremate: chute forte, certeiro, de três dedos, que morre no canto esquerdo do goleiro Albertosi.



 

A jogada do quarto e último gol do Brasil contra a Itália, na final da Copa do Mundo de 1970, pode ser tomada como emblema do futebol praticado por aquela seleção, considerada por muitos a maior da História. O talento dos craques e o rigor estético das tramas tecidas em campo pelo time tricampeão ajudaram a sedimentar — e exportar — uma visão do Brasil. 

“Não tô falando só de futebol, tô falando dum espírito que transmitia aquela seleção, e não é a alegria do futebol brasileiro, não, tô falando duma promessa cumprida, dum sonho realizado", resume Juan, o protagonista de “No estilo de Jalisco”. Na novela, o escritor Juan Pablo Villalobos parte do encanto com o escrete de 1970 para falar do Brasil — e do México — de hoje.

“O futebol tinha sido inventado pra isso, pra ser jogado assim, só que até então isso era só um ideal, uma coisa em potencial, algo que poderia chegar a ser, em resumo: uma promessa”, prossegue o narrador, mantendo o registro coloquial das conversas de bar.

Estamos mesmo diante de uma conversa de bar. O enredo se inicia quando, a caminho do banheiro de um boteco em Botafogo, Juan acaba por derramar bebida sobre a gravata do vizinho de mesa. O chope pedido a título de desculpas bastará para que entabulem um papo sobre sua vida até ali — a vinda do México para o Brasil em 1981, quando tinha 33 anos; o romance com uma nativa que ele agora despreza; o mirabolante projeto que resultou fracassado.

Embora se trate de um diálogo, ao leitor é dado conhecer apenas o relato de Juan. Somos nós os interlocutores, Villalobos parece sugerir. Entre chopes e doses de pinga, ficamos sabendo que o protagonista é filho de um funcionário do mítico estádio de Jalisco, onde a seleção jogou a maioria das partidas do tricampeonato. Que migrou sob o efeito tardio da magia do escrete canarinho, encarnação da “promessa da felicidade brasileira”. Que a imagem de fascínio do time de 1970, apesar das dificuldades e até de certo desencanto com o Brasil, permanecia há até bem pouco tempo, e talvez permaneça, como uma miragem que não se desfaz.

Descompromisso de uma boa pelada

Juan revê obsessivamente os gols da Copa. E é um desses gols — o de Pelé, contra a Romênia — que estimula seu grande projeto. Ele percebe que, no lance, dois jogadores brasileiros se posicionam na barreira adversária, e que Pelé chuta a bola exatamente naquele espaço. “Tive a impressão de que aquilo, além de esporte, era teatro (...). O que parece natural é sempre produto do preparo, do treino, do ensaio”, observa.

Nasce, então, a ideia de reencenar as jogadas do time campeão, ainda hoje impregnadas no imaginário mexicano. Juntar quatro ou cinco dublês dos atletas e excursionar por seu país, levando às pequenas cidades os “craques” brasileiros. Com a ajuda de um empresário esperto, a empreitada segue adiante.

Primeira obra escrita pelo mexicano Villalobos originalmente em língua portuguesa, “No estilo de Jalisco” mantém o humor cáustico de “Festa no covil” e “E se vivêssemos e um lugar normal”, que fazem parte de uma trilogia ainda não finalizada sobre o país natal. A mordacidade do menino Tochtli, que em “Festa no covil” elogiava a delicadeza dos franceses por tirarem a coroa dos reis antes de cortar suas cabeças, ecoa na fala de Juan sobre o povo mexicano, “capaz de engolir qualquer coisa embrulhada em bandeira estrangeira”.

No novo livro, o autor joga solto. Opta por uma narrativa que ressoa a oralidade e brinca com alusões à própria trajetória — o nome do protagonista, o fato de ter nascido no México e atualmente morar no Brasil —, borrando as fronteiras entre autobiografia e ficção. A impressão é que, após duas partidas com uniforme, juiz e campo oficial, Villalobos se permitiu escrever com o descompromisso de uma boa pelada.

Marcelo Moutinho é escritor e jornalista

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