sábado, 5 de abril de 2014

O golpe militar e eu - Luiz Mott

A Tarde/BA 05/04/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Tinha 17 anos quando os militares tomaram o
poder. Eu era então seminarista
no Convento Dominicano de S. Paulo, a
ordem mais esquerdista de nossa história, a
mesma que acobertou Marighela e outros subversivos.
Alguns meus irmãos de hábito foram
presos e torturados. Deixando o convento, entrei
na mais marxista das faculdades da USP,
Ciências Sociais, a aguerrida Maria Antônia,
adversária belicosa da Universidade Mackenzie,
então, baluarte da extrema direita, commuitos
membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Tive como mestres Florestan Fernandes,
FHC e outros marxistas caçados e exilados
pela ditadura. Participei de reuniões da
Ação Popular, Polop, JUC, grupos clandestinos
de oposição aos “gorilas”, como então chamávamos
aos milicos. Meu pai, italiano antifascista,
sempre foi de esquerda; meus irmãos
gêmeos eram anticomunistas e meus dois cunhados,
marxistas-leninistas. Escondemos no
sótão de minha casa um enorme baú com
muitos livros marxistas de um subversivo caçado
pelo Dops.

Entre 1965-1968 participei de uma dezena
de passeatas pelo centro da Pauliceia Desvairada,
cujos brados eram “abaixo a ditadura!”
Fora Aliança para o Progresso! Quebramos
muita vidraça, sobretudo de bancos
norte-americanos; jogávamos rolhas e bolinhas
de gude pra fazer cavalos e cavaleiros da
PMcaírem no chão. Numa destas passeatas, eu
raspara a barba pra não parecer comunista,
debalde: fui preso e fichado com centenas de
outros manifestantes, noite terrível numa cela
do Dops. Minha foto saiu na manchete do
Estadão, cinco agentes me agarrando. Fui preso
uma segunda vez, acusado de planejar
atentado contra o consulado norte-americano
da avenida Paulista.

Ainda em 1982, nos estertores dos anos de
chumbo, consta no Dops minucioso relatório
de um agente relatando minha palestra sobre
sexualidade para enorme auditório na Unicamp:
a ditadura desconfiava desse barbudo
pioneiro domovimento de libertação gay, cujos
militantes mais anarquistas e radicais gritavam:
“o coito anal derruba o capital!”

A Ucrânia e o czar da KGB - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA 05/04/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da
Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Estou em viagem que deverá ser demorada,
mas achei que devia deixar
estas notas sobre a crise que
envolveu a Ucrânia, por ter visitado aquele
país em 2011 e conhecer bastante a
Rússia. Durante a minha agradável permanência
em Kiev, a capital da Ucrânia,
e na histórica cidade de Odessa, jamais
imaginei que as relações entre os dois
países chegariam ao nível de desgaste
dos últimos meses, mas uma coisa ficou
muito clara para mim: os ucranianos detestam
a Rússia, sobretudo pelo traumático
legado do período stalinista. O mesmo
sentimento antirrusso domina hoje
os países bálticos: o comunismo soviético,
por onde passou, não deixou boas
lembranças.

Putin tem muitos admiradores na Rússia
porque, sob sua administração, o país
conseguiu superaras dificuldades econômicas
da décadade 90. Mas o resto do
mundo não se esquecede que o governante
desenvolveucarreira pregressa
no sinistro âmbitoda KGB, órgão repressor
de má fama,ligado à segurança
do estado soviético.Completam o quadro
a tradição autoritáriado czarismo e os
horrores políticos dostalinismo. As novas
lideranças ucranianas pugnavam por uma 
abertura para o Ocidente, contra a
tradição histórica do opressor garrote comunista.

Considerada um dos celeiros do mundo,
a Ucrânia sofreu na II GuerraMundial
a brutal agressão do hitlerismo durante
778 dias, como, em tempos bem mais
recuados, foi invadida por mongóis, poloneses,
lituanos, turcos e cossacos. O
neto de Gengis Khan destruiu a parte alta
da cidade, dividida, como Salvador, em
dois planos. A sobrevivência do país
diante de tantos infortúnios acentuou o
sólido nacionalismo do seu povo.

Um dos mais impressionantes monumentos
de Kiev é o museu ao ar livre da
II Guerra Mundial, repleto de murais e
esculturas, armas em geral do conflito,
além de uma imponente estátua simbolizando
a Mãe Rússia Vencedora, que
rivaliza com a maior, construída em Stalingrado,
de 85 metros de altura (o elevador
Lacerda tem 70 metros).

A Rússia começou em Kiev, antes que
Moscou se tornasse a capital do Império
Russo. A bela e agitada cidade, de largas
avenidas e elegantes bulevares, tem cerca
de 1.500 anos. Foi a capital dos rus, povo
eslavo oriental, nos séculos XIV e XV, bem
como área de influência do Império Bizantino,
que até hoje marca a vida da capital
com o rico legado da sua cultura,
patente na profusão dos esplêndidos mosaicos
das suas igrejas, notadamente na
catedral de Santa Sofia, obra-prima da igreja
ortodoxa. No centro da catedral esplende
uma impressionante imagem em mosaicos
da Virgem Maria, mais bela do que a
existente na Santa Sofia de Istambul. Relata
a lenda que o poder da sua beleza intimidou
os invasores mongóis, obrigados a
recuar diante do impacto causado pela imponência
da Virgem.

Outro monumento público grandioso
de Kiev é o Memorial Golodomor, construído
para registrar a miséria da Grande
Fome de 1932-1933, que matou mais de
quatro milhões de ucranianos pela política
de expropriações do stalinismo. Se
a reforma agrária se impunha na Rússia
pela brutal tradiçãoagrícola da escravidão
dos mujiques,foi entretanto executada
coma violênciaque caracterizava
as ações stalinistas,disseminando o terror
no celeiro ucranianoe na União Soviéticaem geral.

Visitei demoradamenteo extraordinário
parque Golodomor,sob uma emoção
que me levou às lágrimas.
Jamais poderãoser esquecidas a
exuberância da sua documentação e a comovente
profusão de monumentos denunciando
a fome coletiva na Ucrânia. Entre
estes, destaque para a estátua de uma menina
subnutrida, que abala o visitante logo
na entrada do parque, pela notável capacidade
do artista de imprimir o sofrimento
da fome na solidez do cimento. Anjos esculpidos
em pedra branca margeiam a ala
central do museu, que se completa numa
área subterrânea.

Para anexar a Crimeia, Putin evocou o
patriotismo dos russos lá radicados. Curiosamente,
foi assim que Hitler iniciou
a II Guerra Mundial: alegando defender
os alemães dos sudetos tchecos e da cidade
livre de Dantzig, na Polônia. Omundo
mudou pouco nestes setenta anos e a
violência humana continua a mesma.