sábado, 31 de maio de 2014

Roma eterna e inigualável - Luiz Mott

A Tarde - 31/05/2014

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Pelo sétimo ano consecutivo, passo todo
o mês de maio em Roma. E pretendo
retornar enquanto a “vecchiaia” não impedir.
Vivi anos seguidos em Paris, Lisboa, São
Paulo e Salvador, mas Roma é hors concours.
Sobretudo na primavera. Clima delicioso, de
15 a 25 graus, chuva rara. Céu azul, sol brilhando
até 20 horas.

Diversas circunstâncias fizeram a Cidade
Eterna ser tão especial. Suas suaves sete colinas
proporcionam panoramas indescritíveis.
O caudaloso e limpo rio Tibre (Tevere), abriga
ainda hoje peixes e aves aquáticas. Vegetação
nativa exuberante, incluindo oliveiras, pinhos,
carvalhos, olmos, frutas deliciosas. Flores
multicoloridas, com campos cheios de papoula
vermelha e giestas. Muito jasmim com
perfume inebriante. O céu romano é forrado
de pássaros, das pequeninas andorinhas a
enormes gaivotas e corvos. Búfalos habitavam
seus pântanos e uma loba maternal amamentou
Rômulo e Remo, mitológicos fundadores
da cidade e do povo romano.

Não existe no mundo espaço urbano com
tantas fontes, mais de duas mil, comdeliciosa
água gelada, algumas jorrando sem parar desde
o tempo dos césares. É o mais exuberante
museu a céu aberto em todo o planeta, concentrando
as maiores e mais bem conservadas
maravilhas da arqueologia clássica, notadamente
o Panteon e o Coliseu. Suas centenas
de basílicas e igrejas são destaque mundial
em todos os estilos: paleocristãs, românicas
e góticas, mas é sobretudo o barroco,
com assinatura de Michelangelo e Borromini,
que nos extasiam.

Em Roma estão os maiores e majestosos
obeliscos jamais esculpidos, quase todos provenientes
do Egito faraônico. Os mármores
multicromáticos dos palácios e igrejas não
têm paralelo em todo o orbe, assim como as
muitas pinturas de Caravaggio e Rafael, presentes
em diversas igrejas romanas. O povo é
alegre, muito falante, hospitaleiro. Sobretudo
os mais velhos primam pela elegância, senhoras
de cabelo arrumado, coroas com roupas
e sapatos de bomgosto. Todos os caminhos
levam a Roma. E quem tem boca, chega lá...

Reaja ao caos do trânsito, prefeito - JC Teixeira Gomes

A Tarde - 31/05/2014

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Escrever um artigo sobre o caos em que se transformou o trânsito de Salvador não deixa de ser redundância, pois, melhor do que eu, sabe quem dirige. Mas, como jornalista, tenho um espaço privilegiado e me sinto na obrigação de defender os interesses da nossa hoje infeliz Salvador. Por isso, dirigirei estas linhas, enquanto continuo viajando, ao prefeito ACM Neto, embora sem esperanças de que na minha volta algo tenha melhorado.


Quem dirige e trabalha, porque ninguém mais usa carro para passear, sabe o quanto está sofrendo para circular com automóvel ou ônibus em Salvador. Longamente negligenciada por incompetentes administrações, a capital baiana chegou ao paroxismo do péssimo, em matéria de tráfego. O mais grave é que todos os novos administradores, quando assumem seus cargos, protelam medidas imperativas em favor de arranjos, qu apenas iludem ou retardam providências realmente indispensáveis.


Infelizmente, até agora agiu assim também o prefeit ACM Neto. Pois é ou não uma inversão de prioridades realizar obras em um bairro como a Barra, em prejuízo de outras mais urgentes em locais como o Iguatemi, a rua Oswald Cruz, na Mariquita, a saída do Salvador Shopping, e tantas ruas da Pituba, Liberdade, Brotas, avenidas de vale etc., onde a situação chegou a níveis insuportáveis?


Poderão objetar que ACM Neto tem pouco tempo no cargo. É condescendência de simpatizante, já é prefeito há bem mais de um ano. O período é pouco para a realização de obras fundamentais, não para o seu planejamento. Sobretudo, par demonstrar que não inverterá prioridades na cidade sufocada.


Há semanas, elogiei o anúncio que o prefeito fez da recuperação do Aeroclube, destacando a informação de que ele traria uma urbanista internacional para ajudar no planejamento da área. Considerei auspicioso o fato e o tomei como prenúncio de medidas idênticas em outras iniciativas. Esperei em vão. No entanto, essa feliz ideia precisa ser estendida como fator benéfico de rejuvenescimento urbano. Não que Salvador não disponha de quadros para planejar seu traçado. Mas trazer a visão de fora pode tornar-se essencial para renovar o enquadramento das providências. Isto se faz nas principais cidades do mundo, inclusive naquelas que, na Europa, já foram consagradas pelas bênçãos dos séculos.


O estrangulado sistema viário baiano tornou-se mais congestionado pela ausência do metrô, cujo funcionamento só agora se anuncia. A esperança surgiu há mais de doze anos, quando a prefeitura iniciou o que hoje os taxistas qualificam satiricamente de “metrô Nelson Ned”, ou seja, o menor do mundo, com os seus ridículos seis quilômetros.


Continuo aguardando que alguma autoridadedo governo ou da prefeitura venh explicar aos baianos por que “o metrô Nelson Ned” foi levantado sobre portentosas pilastras, que consumiram milhões do povo, pelo uso excessivo de cimento, ferro e brita. Um crime! Salvador, pelo que eu conheço do mundo, é a única cidade que levantou metrô aéreo, quando o normal é que os trilhos deslizem na superfície do solo ou nas partes subterrâneas da cidade. O que considero mais grave é que esse brutal desperdício do dinheiro da Bahia, afrontoso e inadmissível, não provocou uma única investigação, nem muito menos mandou sequer um provável dilapidador dos recursos do povo baiano para a cadeia.


A recente greve dos ônibus tornou a evidenciar o espantoso estado da desordem nos transportes na Bahia. Todos sabemque o prefeito ACMNeto temmuitas ambições políticas. Então é recomendável que transforme sua primeira e única experiência administrativa na vida pública, pois antes não dirigiu órgão algum, numa prova irrefutável de eficiência e consciência de prioridades. O caos reinante no Iguatemi, na absurda rua Oswaldo Cruz, no Rio Vermelho, na avenida Garibaldi, diariamente na saída vespertina do mais importante shopping da cidade, o Salvador, sempre um suplício, em Brotas, na Pituba, na Liberdade etc., em suma, em toda a capital baiana, mais do que remendos, exige medidas corajosas, urgentes e inadiáveis.

A FIFA DAS FIFAS - Arnaldo Bloch

O Globo 31/05/2014

Pode-se gostar da Fifa ou
detestá-la. Eu não gosto.
Uma entidade habitada
por figuras funestas como
Joseph Blatter, atual
presidente, e o recluso
espectro de Ricardo Teixeira,
não é boa coisa.
Uma entidade que mostrou ao Brasil que João
Havelange não era o bom velhinho, uma
entidade que foi indiretamente responsável
pela destruição do Maracanã não merece
empatia. Mas, confesso, eu gosto da Copa. A
Copa do Mundo, aquela que não levava o nome
da Fifa ainda que vinculada à corporação,
sociedade secreta, sei lá, da Copa eu gosto. Se
existe essa Copa pura, ou não, ignoro, mas ela
está impressa em algum lugar simbólico
muito forte que é reativado quando o futebol
se expressa ao longo da competição. Esse fenômeno
independe da própria Fifa, do mercenarismo
dos jogadores, dos intermediários,
do poder da grana, de tudo de ruim.

Isto dito, digo mais: mesmo que não goste
da Fifa, é útil observar que a Fifa tem razão ao
dizer que a “culpa das manifestações” é do
governo. Não que as manifestações sejam
um problema, algo sobre que se deva imputar
uma culpa, muito ao contrário. Mas são
um problema para o governo e um néctar para
a oposição. A Fifa não tem o monopólio do
poder da grana, do fisiologismo, da demagogia.
Se o governo quis fazer a Copa num ano
eleitoral, num país com infraestrutura embaralhada,
num país que planeja aos trancos e
barrancos, a culpa é do governo mesmo. Se o
Brasil escolheu 12 sedes (Blatter diz que Lula
queria que fossem 17), a culpa é do governo.
Foi o governo que assinou um caderno de encargos
absurdo, foi o governo que submeteu
o país às normas da Fifa. Foi o governo que precisou
da Copa Fifa no Brasil. O Brasil sobreviveria
sem a Copa Fifa durante uns bons cem anos,
ou mesmo até que o Sol se extingua daqui a 5 bilhões
de anos, mas o Brasil é o país do futebol, e
o governo crê que o Brasil precisa assegurar sua
hegemonia no futebol e aposta na Copa das Copas.
Não há uma Copa do Mundo paralela, só há
a Copa da Fifa, se quiser Copa das Copas vai ter
que lamber as botas do Blatter. O discurso de
que a seleção é “patrimônio” do Brasil, salvaguarda
da afirmação da identidade e da civilidade
e da cordialidade, isso ninguém engole
mais. O Brasil se transforma.

Mesmo assim, pode-se gostar da Copa, gostar
de Neymar, torcer. Não estão decorando as ruas,
pois hoje metade da vida se passa nas redes, as
outras, ali se discute tudo, futebol, manifestações,
Fifa, figurinhas, pontos de bafo para troca
de figurinhas (e, paradoxalmente, graças às figurinhas
se volta à rua para falar de Copa).

Mas o Brasil vive também uma era de radicalismos,
de forma que quem diz que gosta da Copa
é imediatamente identificado com a Fifa e
com o governo e com superfaturamento e com
tudo de ruim. Quem gosta da Copa, quem quer
torcer, quem quer pintar a rua, vestir verdeamarelo,
é um pária, um traidor da classe média
sacrificada, carece ser patrulhado, ou até agredido.
Nesse campo de batalha fragmentado, vive-
se um suspense jamais visto, a ponto de se
ter dúvidas sobre se a Copa acontecerá ou não.

Claro que a Copa pode não acontecer. Um
planeta em voo livre não detectado pelos observatórios
pode vir a se chocar contra a Terra.
Uma tsunami pode atingir o litoral nacional.
Mas o que se teme é que uma tal convulsão social
se abata sobre o país que impeça a bola de rolar.
Essa profecia, que é mais um desejo que um
cenário provável, tem parentesco com a
crença de que o mundo acabaria em 2012.
Pode até ser que tenha acabado, pode ser
que tenha acabado há mais tempo, pode ser
que nem exista o mundo, que seja uma ilusão
do indivíduo, ou uma ilusão minha, ou
uma ilusão do Neymar, estão aí os solipsistas
para apoiar, ao menos no terreno da filosofia,
essa hipótese. Mas, caso o mundo não tenha
acabado em 2012, e se a Copa de fato acontecer
em 2014, o que será que será?

Será que daqui a duas semanas as ruas estarão
pintadas? Ou, se não estiverem, o brasileiro
vai dispensar o feriado e a cerveja e o
carnaval?

Nesta semana ouvi no refeitório do jornal
um cozinheiro dizer a um nutricionista que
“está ficando mais confiante na seleção”.
Quando começarem as televisões nos botequins
a estourar as primeiras imagens, e
quando Gana e Alemanha se enfrentarem, e
quando vier a Espanha, quando o juiz entrar
em campo e for xingado, e quando Dilma declarar
aberta a Copa das Copas da Fifa das Fifas,
o que será?

Quem vai renunciar ao espetáculo? Quem
torce contra o Brasil vai perder o espetáculo?
Se não houver Copa, como é que se vai torcer
contra o Brasil?

Vexame mesmo é esse álbum de figurinhas.
Papel cada vez pior, fotos horríveis,
projeto gráfico infame. Comprei um, adquiri
30 pacotes e até agora não abri. Deixei na
mala do carro. Como uma caveira de cavalo,
um cachorro enterrado, um montinho artilheiro.
Sinto saudades da estátua do Garrincha
no Maraca e nem sei se vou conseguir assistir
ao vivo a um jogo da Copa (não fui sorteado).
Fazer o quê? Eu não gosto da Fifa. Eu
gosto da Copa. E dos protestos. E do Brasil.

Suspeitas - Jose Miguel Wisnik

O Globo 31/05/2014

O artigo do multiartista escritor Nuno Ramos
na “Folha de S.Paulo”, na última quarta-feira,
intitulado “Suspeito que estamos...”, trata do
estado da coisa com que nos debatemos
diariamente sem saber direito como debatê-la
— o Brasil. Sugiro, a quem não leu, que leia o
quanto antes, se possível antes mesmo de ler
isso aqui. Entre outras implicações, o texto fala
da violência que nos faz girar com ela “como
um animal preso no poste”; da “burrice
urbana” a se espalhar por São Paulo, Salvador,
São Luís, Manaus, Natal; do “Caldeirão do
Hulk”, do Tropicalismo, de Ivete Sangalo, do
“Jornal Nacional”; do Estado e da esfera
privada, da política e da economia, do Plano
Real, do Bolsa Família, da ditadura e da
democracia; de Paulo Coelho, do padre
Marcelo Rossi e do pastor Edir Macedo; da
Portuguesa de Desportos e de Galvão Bueno;
tudo apontando para os personagens
anônimos da nossa dívida interna insaldável.

Como embrulhar num pacote só essa mixórdia
de história social, urbanismo, indústria cultural,
política, economia, religião e futebol, indo
do plano geral ao close, sem pretensão, sem cair no vozerio
das opiniões e sem perder o fio? O fato é que a
novidade do texto está, antes do que em seus conteúdos,
no modo como chega a eles. Nuno Ramos diz ter
relutado em aceitar o convite para escrever na página
de Tendências e Debates da “Folha” por não se sentir
preparado para tratar de nenhum dos temas propostos
pelo jornal — por não ser autoridade em nenhum.
Quando aceita, é para falar não do que sabe, mas do
que suspeita. O artigo tem, então, a forma de uma engenhosa
enumeração de suspeitas interligadas sobre o
Brasil atual, com autoridade dúbia de escritor que, assumindo
a condição do não sabido, vasa as fronteiras
entre os assuntos e acaba formulando o que não se
diz. É desse fraseado, dessa espécie de drible ensaístico
e poético, que saem os estranhos gols que vêm na
sequência. Inclusive porque o estado de suspeita, isto
é, de latência, de um processo não formado que se lê
nos indícios, é o melhor canal de contato, talvez o único,
com aquilo que estamos vivendo.

Acredito ter lido hoje uma notícia que dá o Brasil
como campeão mundial de homicídios. Nuno Ramos
suspeita que a violência seja “o tema primordial
e decisivo da sociedade brasileira”, a marcar viciosamente
todos os outros. A convivência direta ou indireta,
visível ou obscura, histórica e atual, com assassinatos,
age como um “vírus de mutações constantes e
velozes”, confundindo as noções de alto e baixo, direito
e esquerdo, bem e mal, certo e errado, sugadas para
o ralo de uma agoridade sem lastro cujo meio por
excelência, agora suspeito eu, é a televisão, com sua
onipresença sem contraponto e sem contraste.

Antes de chegar a ela, Nuno testemunha as cidades
que apodrecem ao sol, onde ruínas tombadas
pelo Iphan copulam com “despautérios azulejados
de 30 andares”, desconectados de qualquer
propósito cívico, e onde as praias estão comprimidas
por paredões egoístas de edifícios. (Acredito
que o filme “O som ao redor” capture essa mesma
imagem de uma violência surda entranhada na
paisagem urbana.)

As cenas de redenção de pobres, promovidas no
programa de Luciano Hulk, mereceriam ser vistas
naquilo que têm de cruel, humilhante e cretino. Ganharíamos
em ter claro, suspeita ele, o que há de ridículo
na coreografia de rostos virando de um para o
outro e do outro para a câmera, com decorada naturalidade,
na cena diária do “Jornal Nacional”: por
que a nossa mais onipresente fonte de notícias precisa,
afinal, desse teatro infantil? Por que as figuras
televisivas ganham o status de ícones intocáveis, à
maneira dos santos? E o que representa, em termos
de violência imaginária e real, acrescento eu, o bombardeio
publicitário incessante que acena com emplastos
Brás Cubas miríficos — bebidas, automóveis,
cartões de crédito — a uma sociedade fortemente
desigual e a uma população sem o poder
aquisitivo correspondente?

Acho que esse gap acompanha aquele outro
apontado por Nuno Ramos: a migração contemporânea
do imaginário político para o econômico se
fez aqui, ao contrário dos países desenvolvidos, sem
que uma razoável distribuição de renda tivesse
ocorrido antes, sem que se pudesse prescindir do
político, e sem que o Deus-PIB se curvasse ainda, e
muito mais, ao Deus-cidadania. O PT, que deveria
cumprir esse papel histórico, não quis ou não pôde
fazê-lo. Sobreveio um encurtamento da imaginação
e da vontade política, e uma vida cultural cujos
parâmetros se confundiram ou se perderam.


Não falo nada disso em tom menor. Sinto a demonstração
da capacidade de abordar o imaginário
nacional concreto — de Paulo Coelho, Marcelo Rossi
e Edir Macedo como privatizadores do infinito, por
exemplo — sem complacência, sem maniqueísmo e
sem ressentimento, com imaginação crítica e artística,
como um indício animador. Vejo isso nas reações
de alegria que o texto de Nuno Ramos provocou.

As condições do crime - José Castello

O Globo - 31/05/2014

MARCELO FERRONI É UM EFICIENTE CONSTRUTOR DE ATMOSFERAS, QUE MANOBRA COM LENTIDÃO E TENSÃO ASCENDENTE

A ficção tem a estrutura de um crime
de quarto fechado, em que um personagem
é morto em um cômodo
trancado por dentro. Podemos levantar
todas as hipóteses a respeito
do nascimento de uma narrativa,
mas o essencial sempre escapa e tem, até, um aspecto
incoerente. “Das paredes, meu amor, os escravos
nos contemplam”, segundo romance de
Marcelo Ferroni (Companhia das Letras), guarda
a disposição clássica de um romance policial. Há
um crime de quarto fechado — em que a morte
parece, em princípio, improvável e incongruente.
Tudo se passa em meio à atmosfera lúgubre de
uma fazenda, a dos Damasceno, cheia de histórias
de ascensão e poder, de conflitos, de violência e
também de fantasmas. O emaranhado de personagens
acelera, mas dispersa nossa atenção, de
modo que, quanto mais avançamos na leitura,
nossas certezas diminuem.

A estrutura — a mesa — está posta. Sufocado
pela longa tradição do romance policial, o leitor
não teria muito a esperar. Mas é justamente aqui
que ele se engana. Quanto mais ele acredita que
sabe, menos sabe. Quanto mais pensa em dominar
a história que lê, menos a domina. Quanto
mais convicções forma, mais elas se esfarelam.
Há uma constante frustração — que faz a narrativa
andar e nos envolver — muito semelhante à
do protagonista, Humberto Mariconda, um escritor
fracassado. Autor de “A porrada na boca risonha
e outros contos”, ele vê seu livro envolvido
em um grande silêncio. Não há repercussão —
embora diariamente ele vasculhe os jornais em
busca da crítica salvadora. Nada acontece — é
como se o livro não existisse.

Quando pediam a Tolstói que falasse de seus
livros, ele tinha uma resposta mortal: pedia que
os lessem. Esta lembrança do narrador é bastante
útil. É, de fato, muito difícil dizer o que é um
livro, ainda mais quando ele tem a estrutura de
um mistério. O risco da traição é grande. As possibilidades
de estragar o prazer do leitor, imensas.
Começo, então, falando não do livro que tenho
nas mãos — o de Ferroni — mas do livro que
há dentro desse livro — o de Humberto. Foi escrito
com um forte sentimento de raiva. À intensidade
dos sentimentos, porém, não corresponde a recepção
dos leitores. O livro de Humberto parece
mais um delírio pessoal do que uma obra. O que
justifica a epígrafe de Vladimir Nabokov à entrada
do romance de Ferroni: “Como
costuma ocorrer comigo em
momentos de muita atividade
elétrica na atmosfera e de raios
crepitantes, tive alucinações”.
Mas o livro não é uma alucinação,
é um fracasso mesmo. Assemelha-
se à quitinete em que
seu autor vive, e na qual acorda
“com o sol e a enxaqueca ardendo
nos olhos”, depois de
uma noitada amorosa.

Assim, em uma noite ambígua,
ele conhece Julia Damasceno, a mulher que o
convida para uma aventura: visitar a fazenda centenária
de sua família. “Concordei imediatamente
quando ela me propôs uma viagem”, relata. “Não
tinha como saber, naquele momento, que ela me
levava a um crime, a uma entrevista com mortos, a
um duelo”. Nessa fala, Ferroni antecipa o máximo
que pode a respeito do livro que temos nas mãos.
A partir daqui, grudados aos passos de Humberto,
a aventura fica por nossa conta. O protagonista
continua incomodado com o fracasso de seu próprio
livro, que é uma espécie de contraponto à empatia
crescente que o romance de Ferroni nos provoca.
Humberto sofre: “No dia em que deixei de
vê-lo exposto na livraria que frequentava,
reclamei de forma
amarga com o editor”.

Não é o caso da aventura que
ele mesmo vive. Na fazenda dos
Damasceno, envolve-se em um
longo passado que remonta à escravidão.
A história da família se
sintetiza na figura do atual patriarca,
“que me fitou com olhos de
fogo onde espectros gritavam”. A
sucessão de personagens serve,
antes de tudo, para embaçar a
visão do leitor, que se sente a toda hora desviado
de sua rota. Neste ambiente turvo, como o exemplar
de “A porrada na boca risonha” que levara
consigo, Humberto se sente desalojado. Até que os
hóspedes enfrentam uma tempestade, em que as
figuras se embaralham e nossa visibilidade diminui
mais ainda. “A saleta inteira balançava. Ouvi
batidas sequenciais no teto e pensei arrepiado
no tamanho da criatura peluda que se movia no
forro”. A lenda de escravos enterrados nas paredes
— um artifício do proprietário anterior para
fugir da pena pelo tráfico ilegal — torna tudo
mais difícil. “É só uma história de fantasmas”, explicam,
mas nada parece muito seguro. “É um
absurdo ficarmos reféns da natureza”, alguém
pondera. Mas não é só a natureza, ou a superstição
que o envolve naquela noite: são os próprios
mecanismos da ficção, essa máquina incansável,
sempre a marchar, sempre a ranger e a produzir
seus mistérios, que salta do livro de Humberto
para uma segunda ficção.

Um garoto, Carlos, namorado da restauradora
do casarão, aparece de repente e, com sua juventude,
sacode os alicerces. Na outra ponta da cronologia,
o velho Damasceno sobrevive às doenças
e surpreende seu médico. O garoto será um
personagem central a partir do momento em
que um crime parte ao meio o relato de Ferroni.
Um crime de quarto fechado, improvável, com
evidências insuficientes, mas dramático — e que
há que se desvendar. Os bons romances policiais,
como este “Das paredes, meu amor, os escravos
nos contemplam”, se baseiam não só na intriga
impecável, mas, talvez mais ainda, em uma atmosfera
cerrada, que a torne não só verossímil,
mas assustadora. Marcelo Ferroni é um eficiente
construtor de atmosferas, que manobra com lentidão
— para que nos deem nos nervos — e com
tensão ascendente.

Seu romance mostra que não é só o enredo bem
engendrado que define a qualidade literária. Há
um segredo de quarto fechado no interior de cada
narrativa, que envolve o controle do ritmo, a capacidade
de construir personagens convincentes e,
sobretudo, a construção de atmosferas densas,
que nos encubram, provocando uma ilusão de
verdade. A literatura não é verdadeira porque diz a
verdade, mas porque a simula. Porque a constrói
— denunciando, enfim, que toda verdade é sempre
uma construção a que nós humanos, desvalidos,
nos agarramos para seguir em frente.