domingo, 8 de novembro de 2015

A cultura do crime - Cacá Diegues


  • 8 nov 2015
  • O Globo
  • CACÁ DIEGUES Cacá Diegues é cineasta carlosdiegues2015@gmail.com

Estamos mudando para pior no Brasil em termos de convivência humana Oque há em comum entre a campanha racista, via rede social, contra Taís Araújo e o trabalho escravo no país, denunciado por Wagner Moura? E entre a violência que chega ao canibalismo em presídios brasileiros e o projeto de nossos deputados para dificultar e impedir o aborto das mulheres? Ou entre as mortes de PMs e crianças nas favelas, vítimas de tiros vindos dos dois lados, e a trapalhada aparentemente inocente do Simples Doméstico? E assim por diante.


Não é só a necessidade que gera o crime. O Brasil e o Rio de Janeiro já foram muito mais pobres do que são agora, e nossas taxas de violência sempre foram relativamente humanas. Nem sempre o motivo do assaltante é a fome. Se fosse assim, a incidência de crimes seria dominante em outras áreas, longe das cidades afluentes do Sul e do Sudeste. Não sei se esta é a mesma reação das novas gerações, mas eu, que conheci de perto um pouco desse passado, tenho a nítida impressão de que o Brasil, em termos de convivência humana, muda de cara. Para muito pior.

O que comparamos no primeiro parágrafo deste texto são descasos, ilícitos, delitos, contravenções e crimes, malfeitos frutos de uma nova cultura que alimenta um comportamento sem generosidade, sem confiança no outro, sem projeto comum. Essa cultura é fundada num suposto direito individual de satisfazer o desejo sem restrições, produzindo prazer, lucro e poder às custas dos outros. Através dela, o capitalismo financeiro e consumista sequestra a nossa vontade atendendo a nossos desejos.

É impossível proibir o sentimento de um desejo por mais sórdido e repulsivo que ele seja, do estupro à pedofilia, passando por todas as formas imagináveis de violência. Os mistérios do inconsciente humano prevalecem, ninguém é conscientemente responsável por seu próprio desejo. A responsabilidade de cada um é pelo controle da prática do desejo segundo uma ética pessoal, o direito dos outros e princípios acordados em cada sociedade. A vontade consciente existe para impedir o desejo indesejável.

A criação do Estado é um momento importante na história da humanidade. Ele se responsabiliza pelo controle dos desejos criminosos, nem que para isso seja necessário usar a força da qual possui o monopólio. O Estado é o agente da sociedade em defesa da civilização. Quando ele perde o controle disso, quando seus representantes incentivam o mau comportamento pelos exemplos de violência que dão, o caos vence a justiça, a arma se torna mais poderosa que a fala, a civilização desfalece. Como deve agir o cidadão de um país onde, no Congresso Nacional, um grupo de eminentes parlamentares é conhecido e se reconhece como a “bancada da bala”?

Nossos homens públicos, em seus diferentes planos e poderes, estão viciados na cultura do pensamento mágico, criando argumentos e teses mirabolantes (às vezes simplesmente cínicas) que tentam justificar seus malfeitos provocados por desejos materiais. O deputado Luiz Sérgio, relator da CPI da Petrobras, jurou de mãos postas que nenhum homem público havia praticado qualquer ilícito contra a empresa estatal. E ainda aproveitou para atacar a colaboração premiada, a mais civilizada atenuação de pena para quem cometeu um crime. O deputado põe o pensamento mágico a seu serviço e, de tanto repeti-lo aos outros, acaba convencendose do que diz e vai dormir em paz. O juiz Sérgio Moro e seus companheiros são uns inventores de moda.

É esse pensamento mágico a serviço do crime que, em diversas dimensões (ele existe à direita e à esquerda), nos ajuda a esclarecer o que Kenneth Maxwell, brasilianista inglês, afirma sobre nós: a elite brasileira se comporta como se nada se passou e tudo é passado. Ou seja, a elite brasileira se nega a pensar que é culpada de alguma coisa, ela não se dá conta do real porque é incapaz de pensar no outro. Se tudo é passado, não há nada a fazer no presente.
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São Paulo sempre gerou alguns de nossos melhores filmes, com cineastas, de Roberto Santos e Walter Hugo Khoury a Hector Babenco e Fernando Meirelles, que consagrariam o cinema paulista no mundo inteiro. Agora, o governador Geraldo Alckmin decidiu que São Paulo não precisa mais de cinema e está extinguindo o Programa de Fomento ao Cinema Paulista, gerido pelo estado. Justamente no momento em que a SPCine, empresa municipal criada por Juca Ferreira, atual ministro da Cultura, quando era secretário de Cultura da capital, começa a dar seu primeiros frutos.

Durante 12 anos, o Programa de Fomento ao Cinema Paulista viabilizou mais de cem filmes, inclusive nosso premiadíssimo sucesso e atual candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro, “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert. Para os cineastas paulistas, “o fim do programa é uma decisão política que, se confirmada, vai interromper o fluxo de produção com consequências desastrosas para o cinema paulista”, como dizem em manifesto recente. Estamos juntos com eles.

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