domingo, 29 de novembro de 2015

Mistério há de pintar por aí - Cacá Diegues

   O Brasil é um país, para o bem ou para o mal, cheio de mistérios. Três filmes brasileiros, em cartaz na cidade, tentam dar conta de alguns deles. Nenhum tem muito a ver com o outro, os mistérios que eles procuram nos desvendar são de natureza totalmente diferente um do outro.

O primeiro desses filmes chama-se “Chico, artista brasileiro”, foi realizado por Miguel Faria Jr. e nos revela um Chico Buarque que o público muito mais supõe do que conhece. É impressionante como um artista que sempre esteve na linha de frente da música popular e da cultura brasileira em geral, às vezes com repercussão artística e política estrondosa, conseguiu preservar sua intimidade e, mais do que isso, sua individualidade solidária durante os seus 50 anos de atividade.

Um raro padrão brasileiro de integridade, Chico foi sempre um guerrilheiro do próprio pensamento, usando seu talento a serviço de causas que julgava justas, fossem elas de que natureza fossem, retirando-se quando considerava suficiente o que já fizera. Chico sempre teve o pudor do sucesso, sem se negar nunca a aceitá-lo com naturalidade e sem exibicionismo.

No filme de Miguel Faria Jr., pela primeira vez Chico nos mostra, num documento público, como ele é em sua privacidade. Um homem cheio de humor e ternura, capaz de rir-se de si mesmo e de nos dizer coisas da maior importância da maneira mais simples (me surpreendi com sua justíssima fala sobre a bossa nova). Os números musicais, montados com bom gosto e sobriedade, iluminam essa descoberta comovente da obra imortal de Chico.

Diferentemente do consagrado “Vinicius”, esse novo filme de Miguel Faria Jr. se dedica à compreensão mais íntima de seu personagem. Enquanto “Vinicius” era uma fascinante reportagem sobre o famoso poeta e letrista, “Chico” se aproxima de seu personagem para entendê-lo melhor. Enquanto o primeiro filme é um discurso de admiração por um grande artista, esse de agora é um delicado e confessional canto de amor por alguém que mexeu com nossas vidas nestas últimas cinco décadas.

Por provocação do próprio Chico, esse canto de amor vai de assuntos como a censura durante a ditadura militar, até seu orgulho pessoal como boleiro; ou de confissões como a descoberta de seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, através da literatura, até o elogio das relações com sua ex-mulher, a atriz Marieta Severo.

Artista brasileiro por sua própria definição, o filme termina com a interpretação emocionada e emocionante de “Paratodos”, uma criação de antropologia lírica do Brasil, o retrato do indecifrável mistério da genialidade. A cara de Chico.

Outro mistério do cinema brasileiro: “Chatô, o rei do Brasil”, filme de Guilherme Fontes. O que se poderia esperar de um filme iniciado 20 anos atrás, dirigido e produzido por um menino com então pouco mais de 20 anos de idade, sem maiores compromissos com a cinematografia, a política e a cultura do país, um filme que, ainda por cima, havia de sofrer tantos e tão controvertidos acidentes de produção que só lhe permitiriam ficar pronto agora, duas décadas depois?

Pois a vítima de todos esses percalços é um grande filme!

Guilherme Fontes obteve os direitos do livro de Fernando Morais sobre Assis Chateaubriand, o tycoon da imprensa brasileira dos anos 1940 aos 60, e transformou a biografia literária em poesia cinematográfica. Uma poesia osvaldiana, refletida do tropicalismo da segunda metade do século passado, a poesia de “Terra em transe”, “O rei da vela” ou “Alegria, alegria”. Um exaltado carnaval de travellings e jump cuts, sempre surpreendentes e inspirados, para falar do Brasil e de brasileiros menos arcaicos do que podemos supor.
Como um milagre, o filme iniciado há 20 anos tem o frescor de um documento contemporâneo sobre o estado do país e seus líderes em diferentes setores da sociedade. O delírio político, o exibicionismo de comportamento, a ganância e o excesso, a ausência festiva de escrúpulos, parecem inspirados no que lemos diariamente nos jornais e vemos na televisão em nossos dias. Uma comédia dolorosa.

Embora tenha sido lançado em apenas 19 cinemas, “Chatô” fez, na semana passada, a segunda média de ingressos por sala. O que significa que atraiu a inesperada curiosidade de muita gente e, se fosse lançado em circuito maior, teria certamente feito bilheteria significativa. O grande sucesso cinematográfico é sempre aquele de filmes que o público ainda não sabe que vai gostar.

Ainda não vi o terceiro filme de minha lista, mas não posso deixar de lembrar que “Idolo”, documentário de Ricardo Calvet, trata de um grande mistério de nosso futebol, o gênio de Nilton Santos. Nilton, a Enciclopédia do Futebol, nunca deu um carrinho em toda a sua vida e, como jogava sempre de cabeça erguida, nunca soube de que cor era o gramado de futebol. Não dá para perder.


  • 29 nov 2015
  • O Globo
  • CACÁ DIEGUES Cacá Diegues é cineasta carlosdiegues2015@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário