sábado, 13 de fevereiro de 2016

Goles diários de angústia - José Castello

A mitológica relação entre bebida e arte sempre existiu.Agora, ensaísta britânica investiga como o alcoolismo afetou a vida de grandes escritores. 

Por José Castello, para o Valor, de Curitiba 12/02/2016




São muitos os grandes escritores que travaram uma difícil luta contra o álcool. Ernest Hemingway, Tennessee Williams, Patricia Highsmith, Truman Capote, Dylan Thomas, Marguerite Duras, Jack London, Elizabeth Bishop, Raymond Chandler — a lista, proposta pela ensaísta Olivia Laing em “Viagem ao Redor da Garrafa” (trad.: Hugo Langone, Rocco, 320 págs., R$ 44,50), é eloquente. Falando a respeito de Edgar Allan Poe, o poeta Charles Baudelaire disse, certa vez, que “o álcool se tornara uma arma para matar algo dentro dele mesmo,um verme que não queria morrer”. O alcoolismo surge, a princípio, como um recurso de defesa pessoal. Que logo se volta contra aquele que se defende. Defende de quê? O que é esse “verme que não queria morrer”de que falava Baudelaire?


“Quatro dos seis escritores americanos que venceram o Nobel de Literatura eram alcoólatras”, lembra Olivia. As causas do alcoolismo, porém, são esquivas. Na verdade, não existe um único sistema, um padrão fixo, que explique por que uma pessoa se torna alcoólatra. Esse é justamente o grande problema do livro de Olivia Laing: ela luta, desesperadamente, para chegar a uma “explicação”. Só que não existe uma explicação única e é isso o que seu livro, apesar das boas intenções da autora, termina por mostrar.

Foram muitas as grandes parcerias de copo — como o laço de amizade que uniu Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald. Esses vínculos afetivos, contudo, não asseguram uma origem comum. Em seu livro, Olivia procura características psicológicas que uniriam os escritores alcoólatras. Uma mãe autoritária e um pai fraco.Um forte autodesprezo e a sensação contínua de inadequação. A tendência à promiscuidade. Os conflito quanto à própria sexualidade. “Vidas assim parecem trágicas, parecem pertencer a pródigos e dissolutos”, diz a autora.


Contudo, tudo se torna simplista demais. Todos experimentamos,em algum momento da vida, problemas com nossos pais. Todos nos sentimos, em algumas situações, deslocados e inadequados. A sexualidade é, inevitavelmente, um terreno cheio de dúvidas. Não: não dá para traçar, como Olivia se esforça para fazer, um “retrato do alcoólatra”. A moldura sempre se quebra.


Ela se concentra na vida de seis autores: F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Tennessee Williams, John Cheever, John Berryman e Raymond Carver. A arbitrariedade inevitável dessa escolha traz um primeiro problema: o que garante que esses seis escritores dividem um mesmo padrão? Um vínculo entre eles seria o amor pelas viagens. A própria Olivia parece sofrer desse “vício”: seu livro, no fim das contas, é uma grande reportagem de aventura. Em uma tentativa inglória para reconstruir o passado, ela repisa os passos e os deslocamentos de seus biografados. Tenta incorporá-los — como se só através da possessão uma respost pudesse se formar.


O próprio Tennessee Williams tentou generalizar: “Quase todos os escritores americanos têm problemas com o álcool porque há na escrita uma tensão enorme”. Defrontados com esse estado de ameaça contínua, a maior parte dos escritores deseja desaparecer do mundo — e o álcool se oferece como uma borracha capaz de apagar os vínculos com o real. Ansiedade, a ameaça das fobias e mesmo da loucura, a timidez justificariam o desejo de desaparecer. Mas só entre os que se tornam alcoólatras?


A autora sai em busca de psiquiatras e outros especialistas que a ajudem a encontrar “explicações científicas”. Narra sua aventura na primeira pessoa, o que torna a leitura de seu livro, sem dúvida, mais atraente. Busca as inevitáveis raízes da infância. Sobre John Cheever, por exemplo, ela escreve: “Foi um menino franzino e solitário,uma criança um pouco afeminada”, que não conseguia se livrar da sensação de que não passava de um impostor. Buscando outro padrão, Olivia constata que tanto Fitzgerald como Hemingway sofriam de insônia. Mede a intensidade do sofrimento psicológico “a partir dos esforços feitos para evitá-lo”. A própria literatura faria parte desses esforços.


Há sempre, porém, a presença do inesperado. Como quando, depois de uma bebedeira, Fitzgerald fica observando Hemingway “com olhos de pássaro sem nenhuma expressão”. O álcool produz, algumas vezes, pensamentos tenebrosos e aniquiladores. Imagens que não se classificam.


Constata Olivia que o desejo de beber costuma vir encoberto por “desculpas, por omissões, por mentiras descaradas”. Seu biografados experimentam, em um momento ou em outro,o desejo de se esconder “sob um casaco pesado”. Muitos deles defendem a existência de aspectos positivos no alcoolismo. Fitzgerald disse certa vez: “A bebida aumenta o sentir. Quando bebo, minhas emoções crescem”. Hemingway ajuda o amigo: “Quando as coisas estavam bem ruins, eu sempre conseguia tomar um trago e logo as coisas ficavam bem melhores”.


Os sentimentos estranhos, e inclassificáveis, contudo, se tornam obstáculos para o evidente desejo de controle que move o projeto da autora. Cheever, por exemplo, falava “da estranha impressão” de que estava “em dois lugares ao mesmo tempo”. Olivia trat de relativizar essa imagem: “Como biógrafos, não devemos confiar inteiramente e Cheever”. O próprio poeta, em certo momento, escreve: “Devo convencer-me de queescrever não é uma vocação autodestrutiva”.


Para furar a espessa cortina que envolve o alcoolismo, Olivia persegue mecanismos psicológicos regulares, na esperança de que eles organizem melhor suas ideias. Sobre Tennessee Williams, por exemplo, diz ser “um clássico caso de alcoólatra que tenta machucar a si mesmo machucando aqueles que lhes são mais caros”. Contudo, em seus “Diários”, o próprio Williams se pergunta: “Porventura morri por minhas próprias mãos ou fui destruído lenta e brutalmente por um grupo conspiratório?”


Enquanto luta para se aproximar da verdade, o que Olivia evita é a própria complexidade dessa verdade. Quando sua mulher o deixou, John Berryman já estava destruído “pela ansiedade, pela bebedeira, pela promiscuidade e por sua culpa venenosa”. A culpa, de fato, parece ser uma constante, mas também ela se refere a motivações e fundamentos muito diversos entre si. Outro fator repetitivo parece ser a negação, isto é, a recusa a admitir que existe um problema. E também o que Olivia chama de “ilusões sinceras”, isto é, “as ilusões em que o alcoólatra genuinamente acredita”. Mas cada um tem as próprias ilusões e os próprios artifícios.


A autora se recorda de Saul Bellow que, no prefácio de “Recuperação”, romance de Berryman, nos diz que “a inspiração continha uma ameaça de morte, ao escrever ele sucumbia”. Vida e morte estão, de fato, interligados e, ao mesmo tempo, alimentam e destroem os processos criativos. Não são elos fáceis de capturar.Avida, por mais coerente que pareça, é sempre mais incoerente e densa que qualquer padrão.

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